Raspava treze horas do dia 13 de novembro de 2003… Eu estava deitado no sofá, diante da TV, iniciando minha costumeira ‘siesta’ quando ouvi passos apressados subindo a escada em direção à sala…
– Pá… mataram o Paixão – disparou arquejante meu filho mais velho!
– De novo, meu filho! É a quarta vez que ‘matam’ o Paixão… No começo do ano já mataram no Aterrado! Onde foi desta vez…? – Perguntei sem abrir os olhos.
– É serio, pá … O Chinelinho acabou de chegar ali no Minguinho, contando! Parece que ele foi prender um assaltante, mas eram vários assaltantes… Acabou de acontecer perto da Cemig…
Não tanto pelas informações em si, mas pelo estado de nervosismo do meu filho, resolvi acreditar. Sentei-me no sofá e liguei o 199… Foi o Lelis quem atendeu. Quase não conseguiu soltar a voz. Compreendi que havia perdido um colega de trabalho…
– É verdade… Não sabemos como aconteceu! Parece que ele presenciou um assalto à casa lotérica, foi intervir e acertaram um tiro na cabeça dele! Eram três. Um já foi preso… Ta todo mundo tentando prender os outros dois…
Não precisei ouvir mais nada. Naquele dia não teve siesta. Em poucos minutos cheguei à Delegacia. Mal desci do meu carro embarquei numa viatura com dois colegas. A informação era de que um dos assassinos tinha sido visto entrando na clinica Corpus, em frente a Medicina. Três outras viaturas da PC cercavam o local. Entramos como loucos de arma em punho. Funcionários, pacientes, acompanhantes se encolhiam nas paredes, colavam nas cadeiras e poltronas, protegiam o rosto, abriam a boca e se escondiam debaixo de mesas depois que passávamos. Entrávamos em salas de exames, consultórios, banheiros, cegos, sem saber exatamente o que procurávamos! Talvez alguém que corresse ou que apontasse uma arma para nós! Vasculhamos – desordenadamente – cada centímetro da clinica, prontos para prender o assassino do amigo… ou matá-lo. Foi muita sorte nenhum policial ter atirado no outro…! Antes de nos reunirmos todos na rua, chegaram informações que os assassinos tinham sido vistos pegando um ônibus para o Cidade Jardim. Novas investidas agora nos ônibus que seguiam naquela direção… Tudo sem sucesso.
Varias horas depois, sem prender ninguém, conseguimos finalmente nos reunir na delegacia de policia e saber o que realmente acontecera.
Passavam alguns minutos do meio dia quando três pirralhos portando dois revolveres entraram na casa lotérica da Praça Garcia Coutinho. Um assalto básico, corriqueiro. Um deles mais afoito, pulou um canto do balcão e pegou nos caixas o que interessava. Embora tivessem o domínio da situação, tinham pouco tempo para surrupiar o dim-dim e vazar. Apesar da ousadia de assaltar uma loja num local de grande movimento, não tiveram a menor preocupação com a logística da fuga. Deixaram o local à pé. Desceram a Garcia Coutinho, viraram a Bom Jesus, tornaram a virar na Adolfo Olinto e para disfarçar, dois deles entraram em um salão de beleza, enquanto o outro seguiu lentamente pelo outro lado da rua. Não esquentaram as cadeiras do salão. Saíram, um de cada vez, a fim de retomar a fuga, agora lentamente. Não estavam sendo seguidos…
Marcos Antonio da Paixão saíra do plantão às oito da manhã, mas não fora para casa. Embora não tivesse compromisso com investigações, já que trabalhava no plantão na ocasião, ele era um poço de informações policiais, um arquivo vivo… Tinha fontes privilegiadas que precisava alimentar. Ao invés de ir para casa descansar, fora em busca de informações. Passava por ali casualmente, na volta para casa. Ele poderia ter feito qualquer trajeto para chegar ao bairro da saúde onde morava, mas quis o destino que ele fosse de encontro ao trio de delinquentes. Quando passava em frente o salão de beleza, percebeu a pinta de somongó do assaltante. Só um policial experiente e perspicaz como ele perceberia a maneira sutil que o moleque ajeitou o objeto por baixo da camiseta, na cintura. Ele não sabia do roubo à lotérica minutos antes, mas percebeu que o delinqüente franzino tinha uma arma sob a camiseta… Parou seu carro no primeiro espaço que conseguiu encontrar, na esquina do Beco do Crime e saltou já de arma em punho. Tentou saltar, na verdade…! Apesar de toda sua vasta experiência e cautela, Paixão não percebeu que outro delinqüente estava do lado oposto da rua. Quando ele parou o carro e tentou saltar já de arma em punho, para abordar o que vinha à sua esquerda, o que estava do lado oposto se aproximou do seu carro, e atirou na sua cabeça… Num espasmo Paixão ainda puxou o gatilho do 38. A bala se perdeu na parede da casa defronte. O tiro do bandido na nuca fora letal. Morreu sentado no carro. O bandidinho ainda teve a ousadia de retirar o revolver da sua mão agonizante e levar com ele, dobrando e sumindo sem correr pelo Beco do Crime.
Eles nem sabiam que tinham matado o famoso Marcos Paixão, um dos mais valorosos policiais civis que Pouso Alegre já teve.
Um dos latrocidas foi preso na rua Ciomara Casceli, próximo à Corpus, o que gerou as informações desordenadas e nos levou a varrer cada centímetro do prédio e das imediações à procura dos demais, meia hora depois.
Mais tarde, depois de assentada a poeira e esgotadas as informações sobre o paradeiro dos assaltantes, sem muito o que fazer, enquanto esperávamos o corpo do companheiro descer para o velório, fui com o delegado Gilson Baldassari, checar algumas informações no Cidade Jardim. Paramos na esquina de uma construção abandonada. Desci. Fui até a porta, trabuco em punho, olhei e só viu escuridão. Pensei em entrar, mas não tinha lanterna. Olhei para trás, lá estava o delegado me esperando na viatura. Desisti de vasculhar a casa deserta – Deserta? – e fomos embora… Talvez eles tivessem ido a pé para Cachoeira de Minas – Pensamos.
Neste momento, lá do alto do bairro Caiçara, dois olhos atentos observavam nossos movimentos. Viram quando afastamos e continuaram observando a casa abandonada. Vinte minutos depois dois moleques franzinos saíram da sombria construção, atravessaram uma pracinha e entraram no pasto no alto do bairro Cidade Jardim. Os olhos desgrudaram do binóculos no alto do Caiçara, desceram, subiram e em três minutos estavam atravessando a cerca de arame farpado no alto do Cidade Jardim. Outros garotos desocupados haviam se juntado aos dois que saíram da casa abandonada. Agora eram cinco… Dois deles eram os assaltantes da casa lotérica. Um deles havia atirado na nuca do detetive Paixão na esquina do Beco do Crime. O revolver do policial estava enrolado em plástico e enterrado no porão da casa abandonada. Vinte minutos antes estivera apontado para meu bigode na soleira da porta…!
Eu e o delegado Gilson voltávamos de Cachoeira pela estrada de terra quando soubemos, pelo radio, da prisão e dos seus detalhes. Foi impossível conter o arrepio… Um passo a mais no porão daquela casa abandonada às quatro e meia da tarde e teríamos um velório duplo naquela noite!!
Não foi só eu que escapei por um triz, quero dizer, por um passo, de receber um balaço no peito naquela tarde. Os dois latrocidas foram ‘salvos’ pelos três garotos que atravessaram a cerca e foram ao pasto fumar um baseado atrás de um barranquinho. O dono dos ‘olhos que observava do alto do Caiçara’, não sabia quais do cinco eram os matadores do policial…
O trio de assaltantes da lotérica, de 16, 17 e 18 anos, foi transferido de Pouso Alegre, por ordem da chefia, antes mesmo do velório de Paixão. Somente quem os recambiou sabia para onde. Posteriormente soubemos que tinham sido levados para Extrema e Camanducaia. Não demorou muito fugiram de lá. Um deles, soubemos tempos depois, havia sido preso num assalto em São Paulo e outro havia sido morto numa troca de tiros com policiais paulistanos.
Marcos Antonio da paixão, nascido em 56, em Itajubá, era da turma de 81, começou trabalhar em 82. Alto, forte, corajoso, audacioso, muito siso, pouco riso e pouca prosa, ganhou fama desde cedo como um dos policiais mais atuantes e mais temidos de Pouso Alegre. Tinha lugar de destaque na equipe que durante os anos de 83 a 85 colocou a 13ª DRSP-Pouso Alegre em primeiro lugar no Estado. A historia de “Monteiro e o quase 40 ladrões do Bagdá”, publicada no extinto jornal Folha do Vale do Sapucaí, há dois anos dá uma idéia do que foi aquele saudoso quarteto.
Foi numa dessas historias, que ele foi comigo à Poços de Caldas procurar uma vitima de furto para oficializar um flagrante em Pouso Alegre. Na pressa atalhei todas as curvas da serra de Ipuiuna. Na semana seguinte precisei ir à Campinas apurar um furto praticado pelo Peixinho. Tudo combinado. Quando passei em sua casa para pegá-lo às seis da manha ele disse:
– Não vai dar… Estou com dor de barriga!!!
Fomos eu, o detetive Mairinques e o preso. Na volta bati a Brasília branca a 150 por hora perto de Mogi Mirim…
Além de ‘paixão’ no nome, Marcos Paixão tinha outras duas paixões, a família – esposa e o casal de filhos que deixou adolescente – e a policia civil. Estava sempre pronto para qualquer diligencia a qualquer hora do dia ou da noite. Com seu jeito rude e sincero, tinha poucos amigos, mas os estimava como irmãos, os defenderia com a vida. Tinha inimigos fora e dentro da policia… Não tolerava ‘puxa-saco’ e falsidade. Certa vez, em 99, esteve prestes a trocar tiros com desafetos dentro da delegacia…
Nos seus vinte anos de policia, poucos policiais foram tão temidos, poucos prenderam tantos marginais e produziram tanto para o Estado. Poucos tiveram tão pouco reconhecimento do “patrão”. Com quase quinze anos estacionado na mesma classe, Paixão só foi promovido a “Detetive Classe Especial” um ano depois de sua morte.
Naquele 13 de novembro a sociedade ficou mais frágil, mais desprotegida… A policia civil perdeu um grande policial… Quem passou dezenas de noites na zona boemia, dentro de viaturas ‘frias’, de caminhões, de botecos, nas quebradas da noite, quem andou de trator, quem se vestiu de boiadeiro, de mecânico ou de mendigo em sua companhia nos primeiros anos da década de 80… perdeu um grande parceiro!