Agora que a poeira da vaidade, da discórdia, da revolta, do disse-me-disse, do “ele era tão bonzinho”, do “eu quero justiça”, se assentou, voltemos ao assunto com mais calma e com um centavo de bom senso. Senão não sobrará nenhuma lição da morte prematura do garotinho!
Muito se cobrou da policia, dos seguranças da festa de pagode, das autoridades e da justiça. Pouco ou nada se questionou sobre o fato em si. Vamos a ele:
Quase três da madrugada, interior do prédio do DA-Inatel, recinto próprio para bailes, onde não se houve uma palavra do que fala a pessoa que se enrosca na sua cintura e se vê apenas a silhueta disforme das pessoas sob a luz que muda de cor e tom no ritmo da musica. De repente um esbarrão. Não há bom senso, não há pedido de desculpa. É preciso gritar, se impor, tomar satisfação, exigir desculpas ou então revidar com outro empurrão ou porrada. “Então vamos lá fora, seu babaca”. E vão… cada um mais ansioso que o outro para distribuir socos e mostrar sua força!!! Não há mais dialogo. O garoto recebe um empurrão de provocação, se equilibra, dá uma rasteira, o outro cai, se levanta rapidamente mas o orgulho ferido continua se contorcendo no chão, exigindo vingança. Um soco mais potente joga o garoto no chão. Para evitar que venha nova rasteira, um chute bem dado na cabeça e mais um… para ter certeza que não haverá revide. Não haverá mesmo… Não do garoto, pelo menos. Ele nunca mais moverá um membro sequer.
O marmanjo de 21 anos mostrou sua força, venceu o garoto de 16! Matou o garoto de 16 com dois chutes na cabeça enquanto ele ainda estava aturdido pelo soco, no chão. Pode bater as duas mãos no peito, levantar a cabeça e urrar para a lua cheia e para as fêmeas e machos ao seu redor. Ele é o novo chefe da tribo. A ele cabe agora organizar a produção de pedra lascada, polir tacape, quem sabe, inventar a roda… Foi uma luta para ver quem era o mais forte. Qualquer um poderia subir a “Rua da Saudade” no dia seguinte e o outro vestir o uniforme vermelho-fogo do Hotel Recanto das Margaridas. Ambos aceitaram o desafio…de matar ou morrer. “Quando um não quer dois não brigam”. Afinal estamos na idade da pedra…!!! É preciso provar quem é mais truculento!!!
Tudo que o homo sapiens precisa provar, é que evoluiu, cresceu, anda em pé. E isso não se prova com socos e pontapés
Estar no pagode, com apenas 16 anos, às três da manha por conta do próprio nariz é apenas um detalhe. O âmago da questão é: estar preparado para estar ali.
A primeira vez que sai de casa para ir a um evento sozinho, sem meus pais foi há muito tempo. Vesti a calça comprida de ir à missa, uma camisa de flanela xadrez, um paletozinho caqui muito largo, que ganhei não sei de quem e lá fui eu pelo trilho do pasto com os pés descalços pisando o orvalho gelado de um mês de maio. Minha mãe dissera na véspera:
– Voce já pode sair de casa sozinho… Já é um hominho.
Na saída ela se abaixou com fisionomia seria e brava e disse:
– Lembre-se do que eu falei, tenha juízo!!! – E acrescentou – Não volta tarde não, viu!
A festa foi debaixo do bambuzeiro do Benedito Totó, na bifurcação da Estrada do Córrego da Pedra. Acho que éramos uns oito. Os irmãos Pascoal, Zé Arlindo e Beto, o Messias do Cirilo, o Zé do Chico, o Hilário Coutinho, o Gervasio e o Geraldo, meu primo. Quase todos malungos. Ficamos horas em volta da fogueira de bambu seco, conversando, contando historias de assombração e comendo pinhão assado. Quando cheguei em casa minha mãe esperava na janela da casa alta, de pau a pique, sob a luz tênue da lua cheia. Meu pai estava na taipa do fogão de lenha cozinhando o feijão para o dia seguinte, enquanto esquentava os pés.
– ‘Tava bão’ lá, filho – Perguntou alegre me vendo entrar na cozinha iluminada pela lamparina.
– A semana que vem você pode ir de novo – emendou minha mãe, orgulhosa.
Eu havia passado no teste de sair de casa sozinho. Fui e voltei na hora combinada. Fui e voltei com juízo. Eram nove da noite. Eu tinha nove anos de idade.
Não existe receita para se criar filhos. Uma coisa é certa: eles precisam de muito mais do que casa comida e roupa lavada. Precisam de tolerância, equilíbrio e juízo, Precisam de cuidados, orientação e amizade. Precisam de carinho, atenção e participação. Precisam de liberdade, respeito e confiança. Precisam ter seus limites respeitados, suas conquistas exaltadas e seus dons incentivados. Eu arriscaria até um gracejo: “Não basta ser gelol… tem que participar” da vida do filho, saber onde ele vai, com quem vai, conhecer seus amigos, suas alegrias, suas dores e… participar de suas alegrias e curar suas dores. Ser pai é um presente se Deus … Não se pode brincar só no dia do aniversario e depois jogá-lo num canto…
Você sabe onde está seu filho, agora?????
Concordo integralmente! Os pais não sabem nem quem são seus filhos, que dirá saber onde andam, com quem andam e o que fazem! Maioria das vezes, são surpreendidos de forma dramática pelos acontecimentos ! Eh, mundão, onde os pais abdicaram de dar-se de verdade.. eles preferem dar coisas!
Bom dia Alice,
Tomara que seu claro e conciso comentario desperte o leitor e a sociedade para esta questão. ” …pais abdicaram de dar-se de verdade… eles preferem dar coisas!”. Profundo.
Abraços.
Se nao me engano o agressor foi inocentado da morte do garoto. Parece que ele morreu engasgado com vomito. Bebeu muito.
Olá, Arnaldo…
Esta é versão dada pelo advogado de defesa do autor.
De qualquer maneira, não posso afirmar nada, pois este é um dos poucos casos que não investiguei. Abordei o assunto com base nos relatos de pessoas que estavam no local, mas não investiguei…
Abraços.