A rua Monte Sião, no Bairro São João, assemelha-se a uma haste de garfo. Partindo da rua Caldas, começa logo atrás do antigo Sanatório e vai fazendo uma curva até morrer numa rua que sobe defronte a P.R.E. No tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça, no entanto, ela morria num capão de mato e pasto numa grota acima da garagem da Gardênia. Eram poucas e simples as casinhas cercadas de taquaras na ruela esburacada. Lá no final, separada das demais por alguns lotes vagos, pendurada num barranco, cercada de bananeiras, limoeiros e abacateiros ficava a choupana rudimentar do Tiziu. Morava com os pais, Dito Preto, um negro alto, soturno, quase curvado, de andar cabisbaixo e assustador pois só de perto se percebia que ele estava olhando pra gente e dona Elza, também negra obesa e alegre que a qualquer coisa respondia: “graças a Deus, né ‘fio’…”.
Apesar do porte avantajado dos pais, Tiziu era miúdo, franzino, Tigüera. Eu ainda era um entregador de gás da loja do Zézinho Gouveia, não havia sequer entrado numa delegacia de policia, mas já ouvia algumas estripulias do Tiziu. Trombava freqüentemente com ele ali pela Remonta ou Jardim Amazonas. Eu na bicicleta da loja, ele sempre a pé. Nunca nos falamos, até porque o negrinho mirrado sempre fora de pouca prosa. Nossos diálogos, sempre curtíssimos aconteceram a partir dos anos 80 na delegacia de policia ou nas quebradas da noite quando conseguíamos pegá-lo com a mão na massa ou se preparando para dar o bote. Tiziu era tão discreto que era possível passar por ele na rua encostado a um poste ou uma arvore e não vê-lo. Mas ele, como um perfeito somongó, estava sempre atento à sua volta. Percebia a aproximação da policia de longe e com um bonezinho com a aba rente aos olhos se misturava aos transeuntes, às charretes, bicicletas, às arvores aos postes e passava batido. Tem muito meliante que quando está ‘limpo’ faz questão de aparecer, cumprimenta a policia, acena, se abre igual pára-quedas. O Piabinha de Santa Rita, os Coelhos Ly e Ley do Aterrado são assim. Aguinaldinho e Manoelzinho também eram… Tiziu, mesmo que não tivesse culpa no cartório, ao cruzar com a policia lançava um olhar languido e misterioso de esgueio sob o boné, donde se dava para ver o branco dos seus olhos, mas não abria a boca.
O pretinho mirrado que deve ter ganhado o apelido de “tiziu” devido sua semelhança com o diminuto e barulhento passarinho preto, parecia no comportamento muito mais o astuto e arredio “somongó”. Andava de vez em quando com o vizinho Luiz Macaco, da Travessa Juiz de Fora – este eu nunca soube que fim levou – mas praticava seus pequenos furtos e queimava a erva maldita sempre sozinho.
Tiziu foi bandido num tempo em que era difícil ser bandido e fácil ‘pagar’ cadeia. Na sua adolescência e juventude o termo “marginal” caia como uma luva nos meliantes que como ele optaram por andar na contra-mão da lei. Eram todos conhecidos da policia e discriminados pela sociedade. Furtos de quintal, furtos de residência, furtos de lojas, furtos diurnos ou noturnos … cada um tinha sua marca registrada. Ainda que não houvesse testemunha ocular do crime, era relativamente fácil chegar ao meliante através do ‘modus operandi’, da pratica delituosa. Como antes da Constituição de 88 podia-se prender para ‘averiguação’ bastava então arrancar a confissão do sujeito e trancafiá-lo no xadrez. Aí vinha a parte mais fácil da vida de bandido… O condenado não tinha vinculo com os demais companheiros de ‘caminhada’. Bastava esperar pacientemente atrás das grades o tempo passar ou, no caso dos mais apressados, fazer um ‘tatu’ no chão ou no teto ou serrar dois ou três palitos da grade, dobrar a serra do cajuru e voltar para a rua, para fazer o quem bem entendesse da vida, sem ter que dar satisfação a ninguém.
Com a avassaladora expansão das drogas nas duas ultimas décadas e o surgimento da “globalização” a vida de preso mudou da água para o vinho. Hoje quase não existem mais meliantes solitários com o perfil do Tiziu. Eles estão de uma maneira ou outra interligados pelas drogas e pelos ‘compromissos’ da lei do cárcere. Constrangimento de dormir na praia, lavar o boi, dividir o ‘marroco’ e ou ‘bandeco’ é o menor dos delitos. Da exploração sexual e da extorsão ninguém escapa. Só para ilustrar: da ultima vez que o estelionatário e traficante Vicentinho se hospedou no Velho Hotel da Silvestre Ferraz, há seis anos, dona T. sua mãe, era a primeira a chegar para a visita toda quarta feira. Vinha de taxi. Trazia com ela quatro fardos de mantimentos; arroz, feijão, farinha para bolo, cigarro, chocolate, biscoito – dava um trabalhão revistar aquilo tudo – enfim tudo que uma boa despensa não dispensa, suficiente para abastecer uma grande ‘familia’ durante uma semana… E Vicentinho tinha até um pajem particular para empurrar sua cadeira de rodas nos banhos de sol…
Hoje ninguém sai da cadeia sem pagar pedágio. Quem sai de albergue, quem vai fugir ou trabalhar nas obras de ressocializaçao fora da cela ou do prédio é obrigado a levar celular, drogas e ‘kits fuga’ para dentro da cadeia. Estuprador já não morre mais nos presídios… são muito mais úteis vivos, para satisfação da libidinagem e extorsão. Os casos recentes da dupla “Bruno & Osmar”, que estava trabalhando no interior do 20BPM e tentou levar 400 gramas de drogas para o Hotel do Juquinha, na viatura policial; a do Anderson Ratão, que engoliu a droga na fábrica de blocos e passou dois dias à base de purgante para expelir a erva e da egressa Michele, que pagou com a vida a ousadia de colocar cocaína na vagina para levar para o presídio, são exemplos de meliantes que são obrigados pela “lei do cárcere’ a servir de ‘mula’ … ou amanhecer pendurado na ventana, em forma de ‘cotonete’…
Em “As aventuras e desventuras de Cirilo Bola Sete – Meninos que vi crescer”, publicado no ano passado, Cirilo, que passou quase trinta anos na prisão entre uma fuga e outra, um dos poucos que viveram esta transição e conseguiu sobreviver, conta com amargura como é difícil sair do cruel sistema criado pelos próprios presos nos últimos anos.
O arredio e misterioso Tiziu que jamais deu um sorriso, nem amarelo, foi contemporâneo de caminhada de Cirilo, mas não teve o mesmo jogo de cintura, a mesma sorte… Acostumado à caminhada solitária ele se rebelou contra o sistema que batia às portas do Velho Hotel da Silvestre Ferraz nos primeiros anos da década de 90. Aos 34 anos, naquele inicio de década, amanheceu tão duro quanto fora sua vida de marginal, pendurado numa grade da janela. Não viveu para ver a mãe matar o pai com golpes de machado e se hospedar também no velho Hotel da Silvestre Ferraz e nem viu o irmão Bruno, aos 14 anos, matar um amiguinho de 13 numa brincadeira de ‘Roleta Russa’, num matinho no final da Rua Monte Sião, em 2002.
Tiziu era dos bons tempos em que era fácil ‘pagar’ cadeia. Ele não se adaptou aos novos – e cruéis – tempos… Pagou com a vida!