Eram nove da noite quando ela entrou no hospital. Os olhos negros e assustados brilhavam muito e tentavam identificar as pessoas à sua volta. Entrou muda como uma pedra. E mesmo que tivesse assunto e quisesse não poderia falar. Tinha uma mascara de oxigênio na boca. Mas tinha quem falasse por ela… e como falava!! Nilvane, com uma bolsa à tiracolo foi logo explicando:
– O tamborzinho de ar quebrou… A sorte que cheguei até estes filhos de Deus aqui – funcionários da empreiteira que administra a Fernão Dias – para socorrer a gente. Estamos vindo de Taiobeiras para consultar em São Paulo…
A medica desviou o olhar da paciente para a acompanhante para perguntar;
– Como é que é…?
– Minha mãe tem muita falta de ar, doutora. Lá na minha cidade tem recurso, não. Estou levando ela para consultar na capital…
– … E onde fica Taiobeiras?
– Lá no Norte de Minas, pertinho da Bahia. Do coreto da pracinha da pra ver o brilho dos facão dos baianos do outro lado do rio…
– Mas porque vocês não foram para Montes Claros…?
– Nós passamos por lá, num sabe, mas também tem recurso, não…
– E vocês estão viajando de que?
– Estamos no meu Palio, doutora. A prefeitura emprestou dois tamborzinho de oxigênio, mas quando a gente tava chegando aqui perto… Como é que chama esta cidadezinha, moço?
– Camanducaia…
-… eu fui trocar o tamborzinho e sem querer quebrei o danado do botão… Maínha tava ficando roxinha!! A sorte que eu vi estes cabras e eles trouxe a gente pra cá na ambulância amarela…
– “… De Taiobeiras a São Paulo num Palio, com um tubo de oxigênio, para fazer uma consulta…” – pensou alto a medica plantonista enquanto examinava a paciente.
– Olha, Nilvane, não dispomos de nenhuma ‘pecinha’ que possamos emprestar para você seguir para São Paulo com seu oxigênio. Até que você consiga outro ‘tamborzinho’ para seguir viagem com sua mae, ela vai ficar aqui no hospital internada…
– De jeito nenhum, doutora… Já estamos pertinho dos parentes em São Paulo. Vamos chegar lá agorinha mesmo!!
-Sem oxigênio sua mãe não dobra nem a Serra da Cantareira… Sinto muito Nilvane, a responsabilidade é minha. Eu não posso liberá-la.
– Ó xente, doutora. Eu cuido de maínha, eu sou responsável por ela… Pode fazer um documento aí que eu assino agorinha…
As ponderações da medica foram inúteis. Nilvane estava resoluta em seguir viagem mesmo sem o tamborzinho de oxigênio. Saiu com o motorista para fazer um lanche e voltou meia hora depois para retomar a viagem. Mas…
– Estive pensando cá com meus santos, doutora. Acho que vamos seguir o conselho da senhora… Eu vou deixar maínha aqui e voltar para Taiobeiras pra buscar outro tamborzinho de ar… A senhora vai estar aqui quando eu voltar?
-Vou ficar até amanhã às sete da noite
– Vixe!!! A senhora não descansa!!! Não é filha de Deus, não?
É sim. E abençoada. Estava com câimbras nos dedos de tanto massagear o coraçãozinho de um recém nascido prematuro tentando mantê-lo vivo até a chegada de uma UTI móvel de Pouso Alegre e tinha os olhos ainda vermelhos de chorar, pois o esforço fora em vão. Mas esta é outra historia.
A taioberense Marinilza de 79 anos continuou calada, com os olhos brilhantes, atrelada ao oxigênio, enquanto a filha Nilvane tagarela refazia o trajeto de cerca de mil quilômetros até a divisa com a Bahia, para buscar um tamborzinho de ar emprestado. Quando saímos de Camanducaia no crepúsculo chuvoso de domingo, Nilvane ainda não havia chegado com o ar de sua mãe.