Ele tem 34 anos e desde os 16 vive na rua. Aos dezessete matou um colega de ‘ponte’ – moravam embaixo da ponte – e conseguiu casa, comida e roupa lavada de graça. Desde que deixou o hotel do contribuinte de Cambuí, há quase 15 anos, vive nas ruas de Pouso Alegre, no velho hotel da Silvestre Ferraz e agora no Hotel do Juquinha. Seus delitos são leves. Consumo imoderado de suco de gerereba, uma ou outra pedra bege fedorenta de vez em quando, uma briguinha com uma namorada e um furtozinho pé-de-couve aqui e acolá. Nada que faça dele um bandido, mas sem duvida um marginal, destes que mais incomodam do que metem medo. Mas ele já teve momentos de fama.
Em 2002 passava eu pela perimetral com o parceiro Fernando Jardim, quando deparamos com um tumulto na beira do velho Mandu, defronte a tapera da Vigor. Nas duas margens do poluído rio, com a enchente baixando, havia mais de mil pessoas sem contar uma dúzia de policiais militares e outra de Bombeiros. Lá no meio do rio segurando uma bela tocha e agarrado a uma corda atirada pelos prestativos bombeiros, com a água pelo pescoço, Adriano Carlos do Carmo, o JA MORREU, dava seu show. Havia brigado com a namoradinha Luciene e dizia que queria ‘morrer por amor’. A brincadeira era ameaçar soltar a corda e afundar se os bombeiros se aproximassem. Os bombeiros até que achavam divertidos os apupos da platéia. Além do que, nadar àquela hora da tarde, embora em águas sujas de enchente, era refrescante. Mas os PMs já estavam com água pela tampa com a zombaria do nóia. A esta altura Adriano Já Morreu temia sair das águas mornas do rio, pois sabia que ficaria com o lombo quente da manguara dos policiais. Eu conhecia Já Morreu de outros carnavais. Em diversas ocasiões eu havia sido seu anjo bom, inclusive numa delas, levei vestimenta completa do meu guarda roupa para ele quando a PM o conduziu completamente nu para a delegacia. Por isso, ao ouvir minha voz na beira do rio, mamado que estava, desandou a chorar e viu em mim a tabua de salvação. Veio nadando lentamente em minha direção, sem soltar a corda, tentando explicar em meio a chorumelas o que estava acontecendo, sob calorosos aplausos da galera. Parecia coisa de cinema. Ao chegar à margem, no entanto, o inevitável aconteceu. Enfurecidos com o dramalhão do nóia e enciumados com o desfecho inusitado – estavam ali há mais de meia hora tentando sem sucesso por fim ao show do pé-de-cana, de repente a um simples aceno de um civil, o nóia vem para seus braços!!!. – os policiais o agarraram e o arrastaram – literalmente – para a barca. Achei mais sensato não intervir naquele momento e segui para a delegacia. Bastava cruzar a Avenida Perimetral – que ainda não tinha canteiro divisório – e seguir em frente para chegar à DP, quatro quarteirões depois, cerca de dois ou três minutos de viagem. Chegaram com ele duas horas mais tarde. As marcas de botina e cacetete não apareciam tanto porque ele – acostumado a comer soberdas marmitas e PFs oferecidos por donas de casa nas imediaçoes do centro, muito mais por medo dele do que por solidariede – era um mulato encorpado e marrudo. Estava só de calção e como não conseguia andar, foi novamente arrastado na sarjeta até o saguão da delegacia. Não recebeu mais sopapos, pontapés e borracha no lombo porque eu o levei imediatamente para o interior da DP.
Depois de passar algumas temporadas no velho hotel da Silvestre Ferraz e no Hotel do Juquinha, por crimes pés-de-couve, Já Morreu retomou a leve e descompromissada vida de indigente e voltou ao lar doce lar das vielas, marquises, prédios abandonados e pracinha da catedral, na companhia de outros colegas de ‘filosofia’.
Outro dia ele e outros dois colegas de copo, resolveram ajudar o sacristão na coleta durante a missa na Catedral. E o dizimo, é claro se destinava à obras assistenciais … dele e do seu grupo, naturalmente. Como já estavam mamados, sujos e maltrapilhos um seminarista julgou inconveniente suas presenças na Casa do Pai e pediu à Guarda Municipal que os convidassem a se retirar. Eles desistiram da coleta e se foram de mãos abanando. Mas já Morreu não estava morto. Voltou para a coleta no final da tarde, antes da missa das cinco, com a casa santa ainda vazia. Para evitar aborrecimentos e transtornos com a sacolinha, resolveu levar sua parte em ouro e prata. Sorrateiramente pegou um cálice no altar, colocou debaixo da camisa e foi saindo de fininho. Esbarrou numa Ministra de Eucaristia e para disfarçar, fez cara de pelamordedeus e perguntou se ela por acaso não tinha uma cesta básica para presenteá-lo. Lá fora encontrou os amigos Agnaldo Acassio Reis e Evaldo Camargo da Silva e antes de trocar o valioso cálice por duas ou três ‘pedrinhas’ beges fedorentas e um ‘litrão’ da marvada com um intrujão qualquer no velho Aterrado, convidou-os para um trago de suco de gerereba. Não seria com certeza nenhuma Anisio Ferreira e muito menos uma Havana de Salinas, mas o copo? Ah, este era especial, muito especial… Seria no cálice de ouro com detalhes de prata, surrupiado da igreja. Ao passar pela Praça Senador Bento com pinta de somongós, foram abordados pelos homens da lei. Não foi difícil para os policiais deduzirem a procedência do cálice sagrado, dourado e prateado, quase tão valioso quanto o do Indiana Jones. Em poucos minutos o seminarista Wellington Caproni, que já os expulsara da igreja de manhã, reconheceu o caríssimo artefato furtado na igreja.
Tudo resolvido? Não. Ao sentar ao piano, Adriano Carlos do Carmo, que há muito não sabe o que é documentos, disse que se chamava Carlos Henrique do Carmo e com o nome do irmão mais velho foi autuado em flagrante e levado para o limbo do umbral da BR 459. Passou batido na PM e na PC, mas caiu na malha fina ao fazer o ‘check in’ no hotel do Juquinha. Na terça ele voltou à DP para assinar mais um B.O.. Artigo 297 do CP, falsidade ideológica.
Já Morreu e seus dois colegas de copo, embora não vivam sem o famigerado suco de gerereba, devem estar cantando Chico Buarque…. “Pai, afasta de mim este cálice…”.