Zeca Juru, o bom matuto … e os ‘cortes do Orçamento’

Antes que eu batesse palmas, Filó apareceu na janela com uma faca e uma mandioca na mão e foi logo dizendo;

– Graças a Deus que o sinhor apareceu, seo Chips. O Zeca já não agüentava mais sem conversar com o sinhor. Ele só tava esperando o sol entrar pra ir pra cidade procurar o sinhor…

– Mas, e porque esta ansiedade toda…?

– Ara, o sinhor cunhece o Zeca! O sinhor sabe a quantia que ele gosta de conversar com sinhor… E faiz um naco de tempo que o sinhô numa aparece…!!

– E onde está ele, Filó?

– Oi lá no arto da colina, encostado no pé daquele Ipê rosa. Ta isperando o sór se pôr! – Emendou Filó se inclinando na janela com a mandioca-pão já quase descascada na mão.

Segui beirando a cerca de taquara que separa o quintal do pastinho, peguei um trilho batido entre duas frondosas mangueiras, atravessei uma pinguela feita de tora de eucalipto deitada sobre o ribeirão que descia rápido e límpido, subi por uma encosta suave e cheguei ao cume da pequena colina, pouco mais que uma ondulação do terreno. Lá atrás a casinha branca, de varanda adornada por Primaveras e Jasmins já ganhava contornos sombrios. Ali, do alto da pequena colina ainda se via os últimos raios do sol. Aliás, metade, pois a outra já havia se enterrado na Serra do Cajuru. Percebendo minha respiração ofegante, sem olhar para mim, Zeca Juru fez um gesto com o braço, indicando-me uma moita meio russa de capim de égua. Sentei-me em silencio. Zeca Juru podia estar ansioso para me ver e conversar comigo, mas sua ansiedade podia esperar. O sol, não. Em poucos segundos ficaria somente o clarão vermelho, depois rosado, azulado, turvo até escurecer. Nenhum de nós tinha certeza se o veria no dia seguinte! Tão logo a bola de fogo se escondeu atrás da serra, como se estivesse esperando terminar uma oração, Zeca Juru virou-se pra mim…

– Discurpe, seo Chips, o sór de hoje… só hoje! Mais me conta, cumé qui o sinhor tá? Tomou chá de chumiço. E a política? O que o sinhor achô?

– Estou ótimo como sempre, Zeca. Depois que a gente aposenta, tem muito mais o que fazer. A política? Não há nada de novo…! Você que é mais observador, o que está vendo?

– Eu tamém num to vendo nada de novo, não, sêo Chips… Primero, aconteceu o que tava previsto. O povo quiria gente nova na política, mais num tinha…

– Como não tinha? E o Douglas?

-… Mais aí era novo dimais, tamém, né e o povão num querditô! Entre o Enéias e o Agnardo, como não tinha opção, o qui deferenciô foi a rejeição…

– Como assim Zeca?

– Ah, o sinhor sabe sêo Chips, o Enéias sempre foi um sujeito de bão coração, mais quando tava no poder num tinha muita paciência co povo, não. Tratava meio cum casca e tudo, por isso ganhô fama de temperamentar e antipático… É o povo qui fala! I dispois, seo Chips, toda a veia guarda da política tava com ele. O qui é bão nas pessoas ninguém lembra, mais as coisa ruim fica guardada… A rejeição era grande…!

– Mas e a rejeição do Agnaldo…?

-… Era mais pequena, ué! Além do mais, com as obras começada ô anunciada no ano de eleição, cum verba do governo federar, o povo de animô… O Agnardo tinha a faca e o quejo na mão… era só cortá, servi e inchê a barriga! Quem tá no poder, inda mais sendo do lado da presidente, só se fô muito ruim p’ra perder eleição! E ele num é tão ruim assim, né, sêo Chips?

– Bem…

– Mais tem uma coisa qui eu num to intendeno… É verdade mesmo que a prefeitura ta cortando dispesa p’ra fechar o ano sem dívida?

– Isso mesmo.

– … ta cortano hora extra dos funcionários?

– Isso mesmo.

– nas repartição publica não tem mais cafezinho, nem pão..?

– É o que dizem.

– água, só de tornera..?

-Sim.

– Tem instituição mantida pela prefeitura qui não vai mais receber nem alimento este res’diano?

– É o que dizem

– No Pronto Atendimento do São Gerardo só vai tê medico das sete a uma da tarde?

– Isso mesmo.

– Merenda escolar tamém só no ano que vem…???

– Sim.

– Mais num foi coisas destipo que o Eneias feiz dispois da eleição de 2004 e agora foi rejeitado?

– Exatamente isso…

– Mais intão, daqui há oito anos quando o Agnardo fô candidato di novo…

-… O povão já esqueceu tudo, Zeca Juru!

– Discurpe, sêo Chips… Eu to meio bobaiado! Nun to querditano nisso! Mi ajuda intendê!

– Ajudo…

– O Agnardo num ganhô a eleição falando qui feiz mundos e fundos pela educação e pela saúde… e qui ia dobrá o atendimento …?

– Sim Zeca Juru, mas é necessário ajustar o Orçamento do município! Com estas medidas a prefeitura vai economizar mais de dois milhões até o final de dezembro. Essa redução de alimentos, água, café, atendimento medico, hora extra para os funcionários e outras economias não vão matar ninguém…

– Pêra um poco, péééra um poco…! Pêra aí, sêo Chips, que o sinhor ta embolando o meio de campo aqui na minha cachola. O tico e o teco tão quase pegano no tapa aqui na minha cabeça! Dexa eu intendê… Si dá p’ra cortá os gastos superfo neste dois meses e poco i ninguém morrê, quer dizer qui dá tamém p’ra cortar nos nove meses e tanto qui ninguém morre, né…!?

– Teoricamente…

– Si em dois meses i poco economiza mais de dois milhão, em um ano dá pra economizá doze milhão, certo?

– É…

– Maisintão sêo Chips,  de acordo com o tico e o teco aqui na minha cabeça, esses deis milhão que a prefeitura gastô até meados de outubro, num precisava te gastado, uai…?!

Um longo silencio. Até que Zeca Juru dispara…

– E eu fazendo piadinha, falando que queria eleição todo ano!!! Já pensô se tivesse eleição todo ano??? Qui furtuna qui esse povo num ia gastá!?!?!?

O questionamento do velho matuto Zeca Juru cabia ainda muita discussão e conjectura. No entanto uma vozinha entre ardida e maternal vinda lá de baixo, da casinha branca, de cuja janelinha de madeira da cozinha escapava uma tênue luzinha amarela, nos trouxe à realidade;

– Sai do sereno Zeca… A janta tá esfriano…!

Nem havíamos percebido que o dourado poente de uma hora atrás, já estava negro. Do lado oposto, no entanto, surgia majestosa a lua cheia, espalhando prata e poesia em toda planície ondulada do cajuru. Os grilos já entoavam sua sinfonia. Quando atravessávamos a pinguela, um curiango passou raspando por nós, cantou sustenido e pousou do ladro do ribeirão. A fêmea respondeu numa chácara perto dali. O cheiro do frango caipira de dona Filó inundou a varginha. Se não conhecêssemos o caminho, bastava seguir o cheiro do jantar…

A lua havia dominado toda a planície ondulada do Cajuru, quando ouvimos lá embaixo uma voz quase maternal;

– Sai do sereno Zeca, trais o sêo Chips pra jantar

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