Miguel Ribeiro Mira é o tipo de meliante que caminha na contramão da estatística criminal. Enquanto a imensa maioria dos infratores da lei começa a espinhosa ‘caminhada’ criminosa ainda na adolescência, ele pegou a encruzilhada do crime já maduro, barbado, coroa, já descendo a serra. Há quase seis anos quando cheguei para trabalhar em Santa Rita do Sapucaí, Miguel Mira já havia soprado 55 velinhas e estava na mira da lei por suspeita de furtos em sítios e ranchos no bairro do Funil.
Quando peguei uma intimação para entregar-lhe em seu sitio na Ponte do Rio Rennó, meu padrinho Benicio advertiu;
– Esta é a enésima intimação que levamos. Ele não atendeu a nenhuma delas.
Diante da conjuntura resolvi levar então um mandado de condução coercitiva e trazer o desobediente junto com a intimação. Parecia fácil. Ao ouvir nosso chamado na porta do seu casebre escancarado, o coroa ficou mudo. Quando entramos pela porta, ele saiu sorrateiramente pela janela e disparou a correr pela antiga linha férrea. Em seguida embrenhou-se num capituveiro em direção ao rio Sapucaí. Dois dias antes, ao subir num caquizeiro na fazenda do Norton, eu havia torcido o tornoze-lo e estava pisando só o suficiente para andar. Mesmo assim a teimosia me desafiou e fui atrás, correndo com uma perna, manquitolando com a outra … e perdendo terreno. Não acreditei que não daria conta de um velhote de 55 anos. Não dei. Quando cheguei à beira do rio, Miguel Mira já navegava sereno rio abaixo numa canoa que deixara estrategicamente amarrada sob o frondoso ingazeiro. Ele cairia brevemente nas malhas da lei e veria o sol nascer quadrado, mas antes, era preciso amansar o pássaro arredio.
Duas semanas depois voltamos para o café da manha. O tornozelo já estava curado, caso fosse preciso, mas não foi. Levamos conosco o maior aliado da policia, o fator surpresa. Paramos a viatura bem distante, na beira da rodovia e chegamos a pé. As galinhas mais preguiçosas ainda não haviam descido do poleiro. Mas Miguel Mira, ‘gato escaldado’ não costuma cair deitado, já estava no fundo do quintal ao lado de uma pedra apoiada num tronco fincado no chão, amolando um facão. Quando Benicio e Kleber surgiram cada um num canto da casa e disseram com calma e segurança;
– Bom dia ‘seu’ Miguel”, levantou antes das galinhas…
Ao ouvir a voz conhecida do Benicio, o coroa que tinha culpa no cartório, virou-se instintivamente no calcanhar para embrenhar-se outra vez no mato ou quem sabe pular no rio a poucos metros de onde estava. Tarde demais. Eu estava três metros atrás dele, placidamente encostado numa moita de bambu Açu amarelo, apontando o trezoitão para seu enferrujado facão Tramontina.
Esta foi uma típica “Operação Café da Manhã com Meliantes” entre tantas que fizemos em Santa Rita. E foi mais original. A água adoçada fervia no pequeno fogão a lenha na sombria cozinha do nosso preso e como ele estava ‘segurando’ as pulseiras de prata para nós, acabamos de passar o café para ele e tomamos juntos antes de voltar para a delegacia. Depois de sentar-se ao piano e jurar de pés juntos que era inocente, quase um santo, Miguel Mira foi liberado e desse dia em diante, agora que não precisávamos mais dele, trombávamos com ele quase toda hora pedalando sua bicicleta vermelha velha em cada esquina da cidade.
Pois é. O coroa ficou tão manso de gaiola que tomou gosto novamente pela coisa alheia. E evoluiu. Não quer mais saber de canoa ou bicicletas velhas. Seu negocio agora é motoca. Outro dia à tardinha, amigos ocultos da lei digitaram o 190 e avisaram que um cidadão com pinta de somongó estava tentando arrancar a placa de uma motocicleta Factor vermelha às margens da BR 459. Os homens da lei foram checar a denuncia anônima e depararam com meu velho amigo Miguel Mira com a mão na massa. E ele não se fez de rogado. Ao ver a aproximação da viatura policial apelou para o velho estilo; embrenhou-se na capoeira. Para azar dele, desta vez não havia ninguém com tornoze-lo machucado. Miguel Ribeiro Mira, 60 anos, tentou tapar o sol com a peneira, dizendo que alguém havia deixado a motocicleta abandonada ali perto de sua casa e ele queria apenas guardá-la. A motoca vermelha fora furtada perto de Itajubá dias antes.
Tanto furto quanto receptação de rês furtiva tem o mesmo peso no código penal; de 2 a 8 anos de cana. Desta vez não teve choro nem vela e em fita amarela, Miguel Mira sentou-se ao piano da delegada Stella Reis e foi se hospedar no hotel Recanto das Margaridas, desde então não tenho mais trombado com o ressabiado e maduro Miguel Mira nas ruas da cidade.