“Pessoa que deixou rastros na minha terra”
A lembrança mais antiga que tenho do Lita, remonta aos anos 60, quando ele, ainda rapazote, trabalhou com o pai na fazenda do “Seu Zé” Major, onde eu, ainda meninote, ajudava meu pai. Foi naquela ocasião que Chiquinho, ao ver o burrão marrom, matreiro e traiçoeiro, armar um par de coice que poderia feri-lo gravemente, alertou seu estimado e espigado filho dizendo:
– “Liiiiita… não faciliiiiiiita, nãããããooo!”
Pouco anos depois daquela cena e daquela frase histórica pronunciada pelo saudoso Chiquinho, o êxodo rural empurrou minha família para Pouso Alegre. Empurrou, mas não arrancou minhas raízes! No início minhas visitas à minha terra eram mensais. Depois que cresci e pude andar com minhas próprias pernas e comprei o meu ‘poisé’, as visitas se tornaram frequentes, semanais. A primeira casa que eu avistava ao sair do asfalto era a casa do Lita. E quase sempre sua figura muito magra e espigada realizando alguma tarefa em ‘roda da casa’. Por isso nunca perdi o Lita de vista. Vi sua precoce orfandade paterna e não muito tempo depois a materna. Acompanhei sua longa, humilde e honrada trajetória como funcionário da prefeitura de Congonhal. Era muito mais do que um motorista… Era um servidor! Uma pessoa para servir à prefeitura e servir aos munícipes. Lita era daqueles servidores que tinham horário para entrar no serviço… Mas não tinham hora para sair! Era comum vê-lo conduzindo o fusquinha, ou o caminhão basculante levando gente ou terra para algum morador do município quando todos os demais funcionários já estavam de bermuda e chinelão na varanda de casa! Lita não se importava com isso. Aliás, importava sim! Ele gostava de ser útil!
Se Lita serviu à prefeitura de Congonhal e seus munícipes, ele foi ainda mais útil à sua pequena família. Ou seria ‘meia’ família? Com a ausência precoce do pai e não muito tempo depois, a da mãe, ainda lhe restava a tia Águeda. A discreta e bondosa – e às vezes misteriosa tia Águeda – que me acenava da sombra do vão da janela da sua casinha verde, também na beira da estrada, sem nunca encostar no parapeito. Eu via apenas sua silhueta esguia e discreta. Mas me sentia em casa.
Antes mesmo da partida discreta da tia Agueda, a qual ele cuidou com carinho de filho, Lita já havia assumido outra missão: cuidar da irmã de criação e dos sobrinhos, que foram chegando ao longo dos anos… Todos sem pai!
A irmã de criação também se foi precocemente… Mas deixou os meninotes, todos ainda de calça curta, para Lita cuidar.
Já sessentão Lita se aposentou da prefeitura… mas nunca se aposentou dos sobrinhos! Apesar de ter o seu salário e uma pequena chacrinha herdada do pai, que vai da beira da estrada até o ribeirão, Lita nunca parou de trabalhar. Precisava cuidar dos sobrinhos afetivos – Afetivos?!
Mas gostava de trabalhar. De trabalhar a terra, arar ou destocar, semear, cultivar e, finalmente colher o que a sagrada terra bem cuidada oferece em troca. O viço das mini lavouras de cana, de mandioca, de feijão, de milho – pouco mais do que meia quarta de chão – em ‘roda da casa’, enchiam os olhos de quem passava na estrada. Os pendões coloridos e as bonecas perfumadas do milharal chamavam a atenção de quem entrava no bairro. Parecia um jardim!
Dos pequenos e viçosos capões de roça, Lita migrou para a horta. Em pouco tempo o quintal da sua casa virou um tapete multicores… Alface, chicória, almeirão, couve, pimentão, berinjela, jiló, repolho, salsinha, cebolinha… Tudo cuidado com carinho e esmero.
No início de 2016 Lita ficou ainda mais visível pra mim. Durante a reforma da minha casa em Pouso Alegre, fui morar no sítio. Toda vez que eu saia do asfalto e entrava na estrada vicinal dos Coutinhos, eu dava de cara com o Lita. Não havia como não o notar ali na beira da estrada, cuidado com tanta dedicação da sua horta orgânica. Além dos quatro restaurantes do bairro, e outros de Congonhal, os vizinhos também se tornaram seus fregueses. Durante os três meses que ali morei, eu fui um deles. Como era bom ver o Lita, todo intrépido e bem-humorado, colher a verdura fresca e tenra direto na terra, lavar com água corrente e entregar na porta da horta, enquanto falava do seu cotidiano!
Lita, no entanto, não poderia negar a precocidade da sua família! Ele também se foi cedo… embora por outros motivos que não a saúde!
Lita poderia estar lá, ordenhando suas vaquinhas, tão manas quanto ele, cuidando da sua hortinha, contando suas histórias, mas… Mas havia uma pedra no caminho! Uma pedra de crack…
Eu não gostaria, mas não tem como falar do Lita sem associá-lo a drogas!
A droga encurtou sua vida… a droga o matou!
Droga que ele jamais usou!
O salário de aposentado como motorista na prefeitura de Congonhal, completado com o leite de duas ou três vaquinhas e uma viçosa horta de verduras, permitiria uma vida singela, digna e tranquila à Lita. Mas ele tinha que prover, que orientar e sustentar a ‘sobrinhada’, cinco, de imberbes a barbados!
Alguns deles, apesar da seriedade, dos exemplos e cuidados recebidos do tio, experimentaram a famigerada erva ‘marvada’! E como todo bom consumidor de erva – uma droga fraca e relaxante – eles procuraram uma droga mais forte… chegaram ao crack! O famigerado crack, a droga “mentirosa”! A droga que promete matar rapidamente, só que não! Ela mata aos poucos, mata quem consome, mata o pai, mata a mãe e, neste caso… matou também o tio!
Nos últimos anos a dependência química dos sobrinhos se acentuou – desandaram de vez! A dependência e o consequente consumo aumentou! E o custo ficou mais caro. O que ganhavam trabalhando – quando trabalhavam – já não era suficiente para satisfazer o vício. Costuma ser assim mesmo com os viciados! E passaram a visitar a carteira do Lita! Se ele escondia a carteira, era ameaçado… e as vezes entrava na manguara!
Ano passado um dos sobrinhos chegou às ‘penúltimas’ consequências. Para tomar o dim-dim do tio, desceu-lhe o borralho! O ingrato sobrinho foi preso no mesmo dia… mas já havia ‘fumado’ o precioso fruto do suor do tio! Na ocasião, Lita humildemente declarou que o episódio estava resolvido e que não aconteceria mais!
Até três semanas atras, não se sabia que atitude Lita tomaria para evitar que voltasse a ser roubado e espancado. Agora sabemos.
Lita desacorçoou!
O telhado tosco e singelo do paiol testemunhou seus últimos segundos de vida… A corda presa ao pescoço comprido, pendurada na linha, interromperam sua respiração. Lita certamente não lutou contra a falta de ar. Ele queria o resultado. Não suportava mais o sofrimento, a ingratidão… ingratidão daqueles que ele cuidou com tanto carinho! Daqueles que ele alimentou com tanto amor. Daqueles pelos quais ele abdicou da própria vida para cuidar.
Não. Não é drama! Lita cuidou dos sobrinhos melhor do que muitos pais cuidam dos seus próprios filhos! Quem o viu no caixão disse que ele tinha um sorriso no rosto…
Deve ser o sorriso da satisfação do dever cumprido!
Lita poderia ter se casado, ter sentido o calor do corpo de uma mulher! Ter o prazer, a alegria de ouvir crianças correndo pelo quintal e o chamarem de “pai”!…
Aposentado, poderia finalmente ter uma vida social normal, sentar-se na varanda da sua casinha para ver o pôr do sol, visitar e receber visitas de amigos e vizinhos, jogar conversa fora com as pessoas do bairro que o viu crescer… Mas não. Lita não podia se ausentar da sua pequena chacrinha na beira da estrada. Ele precisava continuar trabalhando, cuidando da sua horta, para aumentar sua renda e ajudar a sobrinhada. Além do mais, ele não podia se afastar das suas economias debaixo do colchão… senão elas seriam enroladas numa seda ou num cachimbo fedorento qualquer e virar fumaça! – E tem gente que defende a liberação das drogas!
Ah Lita… homens como você estão indo embora. Estão ficando cada vez mais raros! Mas pode ir, Lita. Você tem esse direito.
Segundo os ensinamentos espiritas de Alan Kardec, ninguém pode tirar a própria vida. Quem o fizer terá que voltar em outra encarnação, às vezes no mesmo lugar em que parou, para reparar o erro. No entanto, Deus, certamente vai abrir uma exceção pra você Lita! Deus sabe que você lutou enquanto teve forças.
Por nós, fique tranquilo. Nós sabemos que você fez até mais do que estava ao seu alcance.
Lita não foi uma pessoa ilustre, rica, famosa… Foi pouco mais do que “… lírios do campo”! Teve tão pouco tempo livre para andar pelo bairro que o criou… Mas deixou rastros na minha terra!
A sensação depois de ler seu texto é de que *Justiça foi feita*. O reconhecimento do valor daquele pequeno Grande Homem é o mínimo e o tudo que podemos fazer, além das nossas orações pela sua alma.
Excelente texto Airton!
Obrigado Joelma.