Quando a jovem medica chegou ao portão do presídio naquela fresca tarde de outono, surpreendeu-se com o cartaz manuscrito pregado à parede da Recepção:
“Proibida a entrada de pessoas fora do horário de visita. Não insistir. A direção”!
Bem… Ordem é ordem. Ainda mais vinda da ‘direção”! Não se questiona. Se cumpre. Mas pelo menos saber o motivo da mudança de um dia para o outro sem aviso prévio, não seria crime! Até porque, embora não fosse funcionaria do Estado ou do município, há dois anos ela atendia voluntariamente no presídio. Merecia um mínimo de explicação. Mas que azar! O agente que a atendeu era um recente desafeto. Dias antes ela descobrira que Rivotril, Diazepam e outros medicamentos controlados que prescrevia e levava gratuita e necessariamente aos presos, não estavam chegando às suas mãos… Mas chegavam às mãos de outros! Por isso tiveram um entrevero. Ao abordá-lo a respeito do cartaz na parede, a discussão reacendeu. E quase pegou fogo. Os presos naturalmente ouviram a discussão e tomaram partido.
Quem o leitor acha que os presos apoiaram? O agente, que com um trabuco na coxa lhes impõe regras, limites e tolhe constantemente sua liberdade? Ou a medica, que toda semana aparece para aliviar-lhes as dores do corpo e da alma com um xarope qualquer, um sorriso franco e uma palavra de conforto?
O agente ficou em saias justas. Não só por isso, mas por motivos muitos mais graves, perdeu o emprego semanas depois.
Passados alguns meses a medica recebeu uma intimação para comparecer ao Fórum da Comarca. Estava sendo processada por Injuria… O autor da ação penal era o aludido agente carcerário demitido. Ela teria ofendido a honra do agente!
Ao sentá-la ao piano o Homem da capa preta foi logo esclarecendo:
– Trata-se de crime que comporta a transação penal, ou seja, se a sra. não quiser levar adiante a pendenga, basta pagar um salário mínimo, que será revertido a uma instituição de caridade, ou até mesmo ao próprio presídio que precisa de reformas e melhorias… Aceitando pagar o salário, não significa que a sra. esteja admitindo sua culpa, mas extingue de imediato o processo e poupa a todos o desgaste de acompanhar um processo judicial. Aceita?
Para ver-se livre de um aborrecimento, ainda mais diante da possibilidade de beneficiar o próprio presídio onde ela já trabalhava de graça e conhecia suas carências, a medica abriu seu costumeiro sorriso e respondeu:
– Aceito.
Dois anos depois, com bilhões de litros d’agua tendo passado sob a ponte, com milhões de folhas secas tendo caído ao chão, eis que a medica recebe outra intimação do mesmo fórum. Estava sendo processada novamente! O autor era o mesmo agente. O assunto ainda era o mesmo. Agora ele alegava que a discussão com a médica diante dos colegas de trabalho e dos presos, lhe causara profunda depressão. Ele ficara desmoralizado perante os presos. Semanas depois perdera o emprego na Suapi por causa dessa depressão, dessa desmoralização. Agora ele pedia R$ 100 mil reais de indenização por danos morais!!!
Dessa vez a ação era civil, não cabia ‘transação penal’. Era pegar ou largar! Pagar e ficar livre ou se ver processar e se defender. Tinha uma terceira opção; propor um acordo, oferecer R$10 mil, ouvir uma contra-proposta de R$20 e acabar acordando em R$15 mil, talvez.
Você meu estimado leitor, se estivesse sendo processado por este motivo, faria alguma proposta? A medica não fez! Não ofereceu um tostão…
O processo teve quatro audiências. Numa o juiz estava de férias, noutra faltou uma testemunha, noutra a ponte caiu… Na quarta audiência finalmente chegou-se ao veredicto. E não foi o juiz quem o deu! Foi o próprio agente autor da ação de indenização por danos morais. A audiência começou como quase todas, constrangedora e acabou de forma hilária. Antes mesmo da oitiva da testemunha arrolada pela defesa. Digna de registro!
Possivelmente encorajado e aconselhado por amigos leigos com argumentos do tipo:
– Vai, processa. Pede cem mil de indenização! Ela vai ficar apavorada. Se ela chamar para o acordo, baixa para 60 mil… Pelo menos uns quarenta você recebe. Você não tem nada a perder…!
– Mas eu não tenho como pagar advogado… – deve ter dito retrucado ele.
– Ara, faz um acordo com o advogado… Se ele ganhar a pendenga você dá a metade para ele. Se perder você não paga. Ta cheio de advogado por aí que topa!
Por causa de ‘conselhos’ de leigos e de alguns advogados assim, as prateleiras dos Fóruns Brasil afora, estão abarrotadas de processos aguardando andamento. Uma demanda judicial justa e necessária, às vezes tem que aguardar anos na fila por causa desses aventureiros que entulham e encalham a justiça.
… Mas o agente não tinha nada a perder! Não mesmo. Provavelmente não teria que desembolsar nem um centavo. Enquanto o processo seguia seus tramites ele trabalhava a poucos metros do Fórum. Em dia de audiência era só atravessar a rua e esperar uma hora ou duas. Assim descansava do trabalho. Ele só não esperava que fosse demorar tanto. Nesse ínterim ele perdeu o emprego. Passou a trabalhar como autônomo. Uma hora ou duas que ele perdia no saguão do Fórum fazia diferença. Dava prejuízo para quem trabalha por contar própria. O tempo perdido no Fórum, no entanto, foi apenas mais um ‘detalhe’.
A testemunha arrolada pelo agente ‘ofendido’ era um colega de trabalho – Se fosse um preso, ele perderia de lavada. Além de ser também ‘colega’ da medica, não tinha nenhum argumento que corroborasse com as declarações do agente. Pessoa simples, humilde porém justo, com medo de se contradizer, ficou acuado diante do homem da capa preta. Gaguejou enquanto buscava palavras que não o comprometessem. Ao sair do gabinete do juiz veio sentar-se ao meu lado no corredor. Suava frio. Seu nervosismo podia-se pegar com a mão. À minha esquerda estava a testemunha da medica, um detetive que conhecia muito bem todos os envolvidos. Ficamos os três conversando até que o agente-testemunha que não tirava os olhos da janelinha de vidro do gabinete levou as duas mãos à cabeça e deixou escapar uma exclamação;
– Graças à Deus, acabou! Fizeram as pazes … Estão se abraçando!
Ao dar a palavra ao agente-autor da pendenga judicial, antes mesmo de ouvir a defesa verbal da acusada, o magistrado já tinha sua opinião formada. Além de não encontrar nos autos embasamento legal para condenar a requerida, ele, como a maioria dos juízes, via com bons olhos o trabalho medico no interior no presídio. Ainda mais um trabalho voluntario! Além de seguir os ritos processuais, ele só queria dar corda para o agente… se enforcar. Mas complacente, quase comovido, deu a ‘deixa’…
– Você tem certeza que quer mesmo levar adiante esta ação…?
Era a frase mágica que o agente esperava ouvir… Era a porta que ele, há dias, sonhava escancarar na sua frente para sair correndo daquela tolice e ir cuidar da vida com coisa mais util. O agente começou acanhado;
– Eu quero arquivar o processo sim, doutor. Na verdade meritíssimo, eu queria pedir perdão pra doutora…
Como que esperando algo parecido a jovem medica levantou-se da cadeira, abriu seu peculiar sorriso, estendeu os braços e disse;
– Só perdôo com uma condição… Que você me dê um abraço!!!
Foi neste momento que o agente-testemunha levou as mãos à cabeça e quase pulou da cadeira ao meu lado no corredor, olhando pela janelinha!
Mas lá dentro do gabinete houve pulo, sim! O magistrado – que inteligentemente havia conversado sobre a primavera no Pólo Norte, os camelos da Patagônia, a flexibilidade da causa do jacaré do Nilo e outros assuntos estranhos à audiência, com o proposto único de sondar o ‘espirito’ e o ‘animus processandi’ das partes, chegando mesmo a se fazer de desentendido ao dizer;
– Desculpe, eu não me inteirei do todo o processo… Pensei que a sra. é que estivesse processando o agente! – Afastou-se da mesa empurrando a poltrona para tras, levantou-se, serviu-se mais uma vez da sua garrafa de chá e bradou;
– Este é um momento histórico para a justiça. O momento em que o requerente desiste da ação e pede desculpas para a requerida! E ainda ganha um abraço fraterno! Escrivã… Este momento deve entrar para os anais da historia forense. Registre isso nos autos: “… e requerente e requerida se abraçaram e se extinguiu o processo”. Estamos diante de uma situação inusitada e sublime! Isso merece comemoração!!! – E serviu mais meia xícara de porcelana chinesa de chá.
A euforia no gabinete durou ainda muito tempo. Enquanto se providenciava o registro do inusitado fato nos anais da historia, se imprimia, assinava, o Homem da Capa Preta ainda contou historias do cotidiano. Agora por puro prazer. Estava feliz. Podia arquivar um processo sem condenar ninguém. Coisa rara. Como era a ultima audiência da tarde, a comemoração só não se estendeu até a noite porque o chá da garrafa pessoal do magistrado acabou!
Quando as partes do extinto processo deixaram o gabinete, o corredor do Fórum se inundou de sorrisos e cumprimentos. Até o agente distribuía sorrisos.
Não ganhara um centavo dos cem mil, mas estava feliz. Afinal, para se defender, tanto a medica quanto o policial civil que conhece bem o agente, poderiam contar muita coisa que não consta nos autos… E o feitiço poderia virar contra o feiticeiro!
O único calado e desenxabido era o advogado do agente. Fizera varias viagens à comarca, por nada…!
Este fato verídico com desfecho justo e bem humorado, passado numa rica cidadezinha nas cercanias de Pouso Alegre há poucos meses, poderia nos deixar uma valiosa lição;
Vamos parar de entulhar as prateleiras do Forum com pseudo-direitos, vaidades e ‘raivinhas’. Vamos imolar a cega justiça por motivos que realmente valham a pena. Assim os doutos juízes terão mais tempo mais julgar casos realmente nobres… E não precisaremos reclamar tanto que a justiça é lenta!
Bela historia !
Processar medico virou profissao …