Estava eu na acanhada salinha do CPD tentando fazer mágica com dinheiro e matemática – R$ 900 reais para pagar diárias de viagem para 15 detetives e delegados – quando o vi pela primeira vez. Na verdade ouvi sua voz. Eram quatro da tarde de uma fresca quinta feira de abril. Com a delegacia quase vazia, a melodia doce de “pense em mim, ligue pra mim…” invadiu os corredores chegando até o cubículo onde eu trabalhava. Não era Leandro & Leonardo… Era um moleque pardo, franzino, calça e camiseta surrada e manchadas de graxa, chinelos havaianas sujos, andando ligeiramente torto. Trazia nas costas presa ao ombro uma caixa de engraxate. Foi cantando e foi entrando. Quando viu minha cabeça de curioso na porta-janela no final do corredor, o cantor – até que era afinado – se ‘exibiu’ para lá.
– Vai graxa aí, doutor? – perguntou ele, parando de cantar.
Nas semanas seguintes ele visitou-me varias vezes no CPD. Em quase todas levou uma moeda e deixou meus sapatos limpos e brilhantes. O próximo cliente foi o Inspetor Ângelo. Este sentava-se nos velhos bancos compridos de madeira na recepção da velha delegacia, acendia um Hollywood filtro amarelo e durante meia hora contava ‘causos’ para as pessoas que inevitavelmente sentavam-se à sua volta… enquanto Claudinei passava graxa e dublava baixinho Leandro & Leonardo. Se Chips e o inspetor Ângelo engraxavam com o cantor, qualquer um poderia fazê-lo. Rapidamente sua clientela aumentou. Agora alguns detetives que usavam sapatos e alguns delegados mais liberais também engraxavam com ele. Claudinei cantor não era um espião, mas bem poderia sê-lo. Jamais intervia nas conversas à sua volta, mas enquanto passava graxa e lustrava sem pressa os pisantes, embora cantarolasse baixinho, estava atento a tudo que ouvia.
Seu ultimo freguês foi a delegada Maria Inês Xavier. O bate-escova e bate-flanela foi no seu gabinete, na primeira sala à esquerda. Findo o serviço, enquanto Inês vasculhava a carteira em busca da costumeira moeda, Cantor exibia seu dom, parodiando uma das românticas da famosa dupla recém desfeita pela morte prematura do mais velho… “…chuva no Aterrado, vento no São João…”
– Toma, Claldinei… Você tem troco para dez? – Disse a delegada estendendo uma ‘ararinha vermelha’.
– Ih, doutora. Não tenho, não…
– Tudo bem. Vá trocar e me traga o troco – Disse a delegada se debruçando numa pilha de TCOs de crimes contra a mulher.
Este foi o ultimo dia que “Claudinei Cantor” ou “Engraxate Cantor” entrou na delegacia alegremente cantando, com sua caixinha de madeira pendurada no ombro. Nossos sapatos nunca mais receberam seus cuidados. Nossos ouvidos nunca mais ouviram sua aguda cantilena. A nota de dez era mágica… desapareceu e com ela desapareceu também o extrovertido engraxate-cantor.
Eu estava sentado numa poltrona velha atrás do balcão na recepção assistindo meu programa favorito; um telejornal, no inicio da noite, quando ouvi o ranger de freios da viatura da policia militar parando na porta da DP. Continuei onde estava. Quando ouvi o som abafado de alguém sendo meio que jogado no banco de madeira no saguão, levantei meio corpo para ver a cara do conduzido. Adivinha quem era? Isso mesmo… meu velho amigo engraxate-cantor. No lugar da velha caixinha de maneira com graxa, tinta, flanela e escova trazia um par de pulseiras de prata… Usava uma bermuda escura e camiseta sujas e rasgadas. Descalço, tinha terra e fuligem de crack dos pés à cabeça. Emergira de sob a ponte do velho Mandu e fora pego na praça Senador Eduardo Amaral tentando tomar na ‘tora’ o celular de uma estudante. Não pude conter a exclamação em tom de galhofa;
– Você sumiu Cantor!!! Olha a situação que estão meus sapatos… há mais de dois meses sem graxa. Trouxe o troco da delegada Inês???
Claudinei, o engraxate-cantor tinha ainda dezessete anos. Não chegou a ficar preso. Sua pena maior pela tentativa ‘paia’ de roubo foi a tortura de sermões inúteis que ouviu antes de voltar para casa, para o crack, para o crime… So deixava a droga quando era pego num flagrante de furto pé-de-couve e ia morar no velho hotel da Silvestre Ferraz, pois logo completou dezoito anos e deixou de ser ‘dimenor’.
Chegava sempre sujo, mal vestido, mal alimentado, magrelo e molambento. Em pouco mais de uma semana ganhava cor, peso e aparência até melhor que quando engraxava sapatos. Ganhava roupas usadas e como seus crimes eram sempre pequenos, ficava pouco tempo preso. Saia sempre alegre, boa prosa jurando de pés juntos… “Drogas nunca mais”.
O cantor, que embora ainda cantasse, perdera um pouco da afinação, talvez pelo uso intenso da pedra bege fedorenta. Mudou de profissão, mas permaneceu no ramo. Não era mais engraxate de sapatos. Agora era engraxate de portas de aço, de lojas. Nesta atividade ‘especializada’ ganhava mais do que moedas e podia continuar freqüentando os mesmos lugares de antes no centro da cidade, conversando com as pessoas como antes, falando de suas vida, se intrometendo na dos outros, pedindo ‘força’. Passava na rua Silvestre Ferraz mas não entrava na delegacia. Lá as portas eram de madeira…
A atividade de engraxador de portas de aço era mais rendosa e quase sem concorrência, mas, embora existam muitas, quase nenhum lojista liga para isso. As vezes passam anos sem lubrificar as canaletas. A escassez de clientela levou Engraxate-cantor a procurar um fonte extra de rendas. Enquanto assoviava uma cançãozinha romântica e passava graxa nas canaletas, Claudinei passava também a mão leve nalguma peça ‘distraída’ na loja. Não tardou as queixas de pequenos furtos afloraram na DP. O suspeito numero um era…? O engraxate-cantor!
Certa manha de 2004 Teobaldo passava sozinho pela Duque de Caxias quando avistou Claudinei na rua. Parou o Uno e convidou o mocinho para dar um passeio.
– Porque, Teobaldo? Eu to ‘diboa’… Não fiz nada.
– É só para um reconhecimento… Você não vai ficar preso.
De fato não ficaria, pois não existia mandado contra o dublê de Leonardo, mas foi necessário descer do Uno, pegá-lo pelo braço e colocá-lo sentado no banco da frente. Ao parar no transito na esquina da Vieira de Carvalho, Cantor aproveitou a parada, saltou do veiculo e correu na direção contraria ao transito, deixando o policial só com o cabo do guarda chuva na mão…
Frustrado mas não alienado Teobaldo seguiu para a Delegacia mas não chegou lá. Virou na João Basílio e rumou para o Aterrado. Parou o uno entre outros perto da oficina do Pompeu, antes da ponte e ficou na espreita. Não tardou Claudinei Cantor passou por ali pedalando uma bicicleta velha. Na abordagem o policial vacilou e Engraxate-Cantor conseguiu vazar. Entrou pela Diquinha, de repente abandonou a bicicleta e entrou no Rio com água pelas canelas. Sem querer entrar na água poluída do velho Mandu, Teobaldo tentou parlamentar, mas não conseguia convencer o fujão a aceitar seu convite para o passeio. Quando ameaçou entrar na água, Claudinei atravessou o rio. Ele deu a volta pela ponte e Claudinei voltou para a margem direita. Teobaldo voltou, Claudinei tornou a atravessar rio e sentou-se seguro na margem esquerda. No mato sem cachorro, o policial tinha ainda um trunfo: a bicicleta que Engraxate-Cantor havia abandonado na beira do rio. Fez chantagem. Ameaçou levar a bicicleta para a delegacia se ele não se entregasse. A esta altura o espetáculo já havia atraído dezenas de pessoas no beiral da ponte. Cada um com sua torcida. Só faltaram as apostas para ver quem se daria melhor;
– Aposto que o Cantor vai fugir…
– Ah, o Teobaldo não vai deixar barato…
Esta historia lembra “Peixinho e…Eu”, publicada em 2010.
Em meio ao enfadonho diálogo “vem comigo que eu não vou te prender”, “não vou porque eu não fiz nada”, Teobaldo se lembrou que tinha no bolso um aparelho celular – Eureka – Pegou a bicicleta de estimação do engraxa-te, simulou colocá-la na traseira do uno e pediu apoio ao primeiro colega que conseguiu contatar. Continuou dialogando com o engraxate, que a esta hora já se sentia o ultimo biscoito do pacote, sentado tranquilamente na beira do mal-cheiroso rio. Só faltou deitar ou então cantar e bater palminhas; “ Você não me pega, você não me peeeegaaa”. De repente surgiu do outro lado do rio a figura atarracada do detetive Ozanam. Ele foi se aproximando de mansinho e quando chegou a poucos metros do engraxate, diante dos olhares em suspense da platéia em cima da ponte, deu-se o luxo de encenar os passos de um desenho animado em posição de ataque, com os braços levantados, até chegar por trás e abraçar o recalcitrante fujão. Neste momento partiu da ponte um sonoro Uhhhhh seguido de calorosos aplausos pelo desfecho da operação e sucesso da encenação. Como prometido pelo policial, Claudinei Cantor foi apenas ouvido em inquérito policial do qual era suspeito e liberado.
Algumas semanas depois o engraxate-cantor protagonizou mais uma cena engraçada com o mesmo detetive Teobaldo. Inicio de rebeliões e motins faziam parte do dia-a-dia do velho hotel da Silvestre Ferraz. Tudo começava com a famosa “greve de fome”. Para começar a greve não era preciso motivo. Bastava um dos hospedes mais ‘graduados’, enfadado jogar a marmita no corredor e dizer um impropério qualquer, todos os demais recusavam o alimento. Até porque nao fazia diferença comer ou não o ‘bandeco’ fornecido pelo Estado. Toda cela tinha fogareiro de ‘rabo quente’, panelas e mantimentos. Dava para se assar até bolo … As marmitas intocadas recusadas pelos presos eram doadas ao Asilo Betania da Providencia e às vezes distribuídas em via publica, no velho Aterrado. Bastava parar a viatura no meio da rua Oscar Dantas, Sapucaí, João Sabino… ironicamente ruas que mais ‘forneciam’ hospedes para o velho hotel e começar a distribuição. Em poucos minutos dezenas de “quentinhas” esquentavam o estomago de pessoas carentes, alguns parentes dos próprios presos. Foi numa destas ocasiões que o detetive deu risadas. Ele voltava da Sapucaí com umas três marmitas que sobrara e resolveu entrar pela Carmelino Massafera, quando avistou o engraxate-cantor. Businou e acenou para ele para oferecer uma marmita. Claudinei, que certamente tinha ‘culpa no cartorio’ saiu em desabalada carreira e entrou em casa, se justificando com o velho chavão:
– Que isso, Teobaldo, eu não fiz nada não!!! Eu tô de diboa…”
– Calma, garoto… Só quero lhe dar uma marmita que sobrou da greve…!
Naquela noite a mãe e os irmãos do engraxate-cantor jantaram arroz com feijão, almôndega e mandioquinha salsa… E puderam comprovar que a comida da cadeia não era tão ruim assim.
Alguns meses mais tarde – sem teatro – enroscou-se até o pescoço nas malhas da lei e foi morar no velho Hotel da Silvestre Ferraz. Ele era bom de lábia com qualquer um, mas não tinha muito jeito com mulheres. Sem conseguir levar uma paixão platônica para a cama, resolveu levá-la para o mato mesmo… Tomou 7 anos de cana. Cumpriu parte no velho Hotel da S.Ferraz no regime fechado e foi morar na APAC, no regime semi-aberto.
A vida mansa e regrada, com alimentação balanceada na APAC, trabalhando terceirizado para a Tigre, o dia todo sentado na sombra, fez bem ao engraxate. Cantor clareou a pele, recuperou a serenidade da tez, engordou. Engordou até demais. Ganhou uma respeitável barriga. Parecia um Pachá. A ultima vez que o vi na Apac, em 2010, ele disse-me que estava namorando firme e quando saísse da Apac iria se casar… e me convidou para padrinho.
Todo meliante quando está atrás das grades é quase santo. O único pecado que comete lá – que ele não acha que é pecado – é que ele é inocente, não fez nada de errado…. fizeram com ele. No mais, está ‘diboinha’, mudou de vida…
– Parei, Chips. Parei com esta vida errada. Louvado seja Deus. Cristo me mostrou o caminho. Quando sair daqui vou arrumar um emprego… Você podia dar uma ‘força’…
São todo sorriso, gentileza e amenidades. Se deixar eles tem assunto na porta da grade o dia inteiro. Fora da cadeia o meliante é outra pessoa. Quando te encontram na rua – a maioria – olham de longe, com arrogância, cheios de direitos, principalmente se estiverem ‘devendo’ alguma coisa.
Foi assim que encontrei o engraxate-cantor próximo à Delegacia ano passado. Ainda estava gordo e corado. Estávamos no mesmo passeio, não teve como desviar. Cumprimentamo-nos e falei que iria contar sua historia no jornal.
– Não, Chips, tá louco. Eu to ‘diboa’…
Não esticou conversa, não falou de Cristo, não falou de trabalho, não falou de casamento. Tinha pressa em se afastar…
Semana passada cruzei com ele numa rua do meu bairro. Ainda estava dignamente vestido, mas não tão gordo e vistoso como antes. Bastante arredio, apenas cumprimentou-me do outro lado da rua, olhando de esgueio sem parar.
Acho que o engraxate-cantor está devendo alguma coisa…
Gostei da História,espero que o engraxate cantor pare com essa vida,mais realmente a história das marmitex foi engraçada kkkkkkkkkkkkkkkkk.
Oi Elaine,
A distribuição de marmitex ‘refugadas’ pelos presos, era rotina quando o Velho Hotel da Silvestre Ferraz estava por conta da policia civil! Era gratificante poder dar um destino proveitoso à toda aquela comida, distribuindo-a a quem precisava. Muitas vezes, quando os presos pegavam e depois devolviam e a comida ja não servia mais para o consumo humano, ainda aproveitávamos para alimentar cachorros de rua e galinhas…
Ja a historia do Engraxate-Cantor, infelizmente não tem final feliz… Tenho visto-o de vez em quando pela rua! Está sujo, maltrapilho, magro, arredio… Tal qual estava ha dez anos quando começou frequentar o velho hotel… Em nada lembra o rapaz, alegre, gordo, cheio de prosa de quando estava na APAC ha dois anos e me convidou para ser seu padrinho de casamento… É uma pena! A droga … é uma droga!!!
Abraços.
Me pareceu muito apetitosa a mandioquinha salsa e as almondegas …eles se alimentam bem!e ele ainda correu qdo lhe ofereceram a marmita com medo de o levarem para o hotel rsrsr.
Chips, recordo-me de 2 irmãos engraxates que também cantavam. Sempre fornecíamos alimentação para eles. Salvo engano um deles se chamava Anderson Terra da Silva. Vc tem notícias desses 2 irmãos? Eram crianças de olhps claros em meados de 2004…um mais tímido e observador…o outro mais falante e solto.
Olá Jsilva,
Não estou me lembrando destes dois…
Abraços.