Caim tenta matar Abel… e o contribuinte paga a conta

         Nas minhas incontáveis viagens do centro da cidade para o novo hotel Recanto das Margaridas tinha uma pessoa que invariavelmente víamos todos os dias. Moreno claro, feio e asqueroso, estatura mediana, calça de moleton e camiseta surradas, às vezes sem camisa, de tênis, de chinelo ou de pés no chão, lá ia Funil… magérrimo, rápido, calado. A cada dia ‘afunilava’ mais. Meu parceiro Benicio que o conhecia de outros carnavais se limitava a comentar;

      – lá vai o funil, cadeieiro velho… Tá que é só o pó… um restinho. O pai dele vive no asilo. Quando bate a fissura ele pula o muro do asilo e espanca o próprio pai em busca de dinheiro para comprar droga. O crack vai acabar logo com ele se ele não acabar com o crack .

        Apesar da vida torta de Funil, nossos caminhos não se cruzaram. Aposentei e certo dia fui com a esposa fazer uma visita ao novo Hotel Recanto das Margaridas. Enquanto ela atendia seus impacientes pacientes com micoses, alergias, asmas e outros bichos no consultório improvisado, encostei-me à grade do pátio para jogar conversa fora com meus antigos ‘clientes’. Um senhor se aproximou, puxou prosa e logo dominou a ‘palestra’. Claro, pele rosada, barba feita, cabelos penteados, saudavelmente gordo, bem trajado e muito politizado. Quando perguntei qual fora sua bronca, pensando que talvez fosse depositário infiel, pensão alimentícia ou quem sabe estelionato, o “Lia” que ouvia nossa conversa deu uma risada e entregou:

       – Ahh, Chips, este é o Funil….!!!

       Baixei os óculos escuros para conferir. Era mesmo o trapo do Funil. Quero dizer, o novo Funil, há vários meses sem queimar a famigerada pedra bege fedorenta. Parecia realmente outra pessoa, na aparência, nos gestos e na prosa. Eu já havia visto muitas mudanças parecidas… e muitas recaídas.

        Torci como sempre, para que o vistoso e saudável Funil nunca mais se afunilasse nas drogas. Infelizmente, torcida não ganha jogo…

        Funil tinha pouca pena para pagar. Havia descumprido ordem judicial para freqüentar o CAPS por isso fora preso. Mas logo voltou para as ruas… e para o vicio. Eu ainda teria muitas noticias dele, inclusive no PSF I onde ele ia buscar medicamentos tarja preta para trocar por pedra bege fedorenta. Usava até a irmã para tentar duplicar a receita de rivotril e trocar por drogas.

        Outro dia a campainha da minha porta tocou. Abri o portão, era o velho Funil. Tão esquelético e maltrapilho quanto quando eu o conheci cruzando ligeiro e ressabiado a avenida que separa o centro do Recanto das Margaridas. Ele não me reconheceu, ou fingiu não reconhecer. Apresentou-me uma receita medica dizendo que precisava de dinheiro para comprar os remédios. Peguei a receita e orientei-o a voltar depois para buscar os remédios. Isso foi há três meses, não o vi mais, mas ele continua em cena.

       Contrariando as estatísticas, tal como a AIDS, o crack não está mais matando rapidamente. Antes de matar, a droga faz um tremendo estrago no viciado, na família dele, na sociedade e no bolso do contribuinte que tem que financiar a policia para correr atrás dele, para cuidar da sua saúde e reinseri-lo na sociedade. Segundo Alexandre Padilha, Ministro da Saúde: “O crack se tornou uma epidemia. Por isso é preciso uma coordenação de ações de segurança publica, de saúde, de educação, de reinserção social para combatê-la.”

      – Espere um pouco! O que Abel & Caim tem ver com esta matéria? Ah… chegamos lá.

       Esta foi a ultima façanha do Funil. Em meio à fissura da droga, Funil pegou no tapa com seu irmão Marcio Valentim, que também não é flor que se cheire e bateu-lhe tanto com socos e pontapés que o mano foi parar no hospital, na UTI e está com a vida por um fio. Fio mesmo… se tirar da tomada ele morre. Com um detalhe: enquanto Marcio Valentim, que foi transportado de UTI-móvel para o hospital regional de Pouso Alegre no sábado à noite está ocupando um leito de UTI outra pessoa que não tem nada a ver com drogas, poderá morrer por falta de leito no Susfácil. Aliás, isso aconteceu! O trabalhador Jose Maria da Silva, de 62 anos, morreu na madrugada de domingo na Santa Casa de Campanha por falta de vaga no Susfacil na região!!!

        Ah, mais um detalhe. A irma do Funil está fazendo corrente de oração pela saude do Marcio – tudo bem – mas não comunicou a tentativa de homicido à policia… 

     …. E tem gente fazendo campanha para liberação das drogas!!!!

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