Jó…

 É uma dessas pessoas que deixaram rastros na minha terra!

 

Jó… quando ainda rachava lenha para ganhar um prato de comida!

Ninguém sabe ao certo quando elas pararam no bairro pela primeira vez! Quando os moradores perceberam, elas estavam acampadas sob uma caneleira na beira da estrada. Dormiam sob arvores e sobre trapos! Quando se deslocavam carregavam as tralhas em sacos nas costas. Pediam o almoço aqui, o jantar ali e tornavam a arranchar sob frondosas arvores nativas. Quando chovia, dormiam na beira de ranchos ao longo da estrada. Ficavam uns dias por ali nessa rotina até que desapareciam. Cavaleiros ou carreiros de boi que levavam mercadorias ou gado de Congonhal para Pouso Alegre diziam tê-las visto caminhando ou arranchadas ao longo do caminho. Alguns meses depois voltavam a arranchar no bairro dos Coutinhos. Vinham sempre pelo bairro dos Macacos, dobravam o morro das onças e chegavam ao centro do bairro. Inicialmente eram duas: Bastiana ‘velha’ e a filha Bastiana ‘nova’. Depois vieram os filhos da Bastiana nova: Dito e Jó.

Jó cresceu andando pelas estradas quase desertas da região, andando lentamente atrás da mãe e da avó. Andava lentamente porque elas, carregando as tralhas ajoujadas nos ombros, não conseguiam andar rapidamente. E não havia pressa. Não tinha uma tarefa para tirar. Não tinha um destino aonde chegar. A única coisa que os esperava no final do caminho era uma sombra de arvore para descansar. E a sombra não ia sair do lugar ou reclamar se eles atrasassem.

A hospitalidade peculiar dos descendentes de João Coutinho Portugal, pôs fim à vida nômade da família da Bastiana. Inicialmente faziam paradas mais longas ali no bairro do que em qualquer outro trecho da região. No seio daquele povo alegre, compassivo e ordeiro – e religioso – era fácil conseguir comida. Depois de anos andando pelas estradas com as tralhas em sacos ajoujados nos ombros, no final dos anos 50, finalmente fixaram residência ali, onde construíram uma choça na beira da estrada. Era uma choça mesmo. Feita de bambus inteiros e coberta com sapé. Apenas o lado interno das paredes era preenchido com barro, para evitar a entrada do vento. Juntando pedras e barro construíram também um fogãozinho no chão na entrada da morada. A utilidade maior do fogão era esquentar água e… esquentar os pés, antes de dormir! A choça foi construída embaixo de uma moita de bambu, entre a BR 459 que seria asfaltada e a estrada Velha que levava quem quisesse para Congonhal. A água corrente ficava há cerca de cem metros abaixo no Ribeirão Santo Antônio que corta em toda extensão o bairro.

Jó era saudável e tinha braços fortes, mas tudo que aprendeu na vida durante suas andanças, era rachar lenha, carpir horta, limpar curral, atividades que não exigiam nenhuma habilidade construtiva, ferramenta especial ou apego à terra. Jamais plantou um pé de milho, jamais tirou uma tarefa de quinze braças, jamais fincou mourões e esticou uma cerca de arame farpado, jamais tangeu ou ordenhou uma vaca Jersey cor de caramelo. Aprendera desde pequeno, com a avó e a mãe, que para conseguir um prato de comida bastava rachar um monte de lenha na casa do ‘patrão’. A cachaça que ele bebia de vez em quando na vendinha do Vilino, essa custava menos. Era só pedir que alguém pagava. – Nas vendas de beira de estrada na roça, nunca faltou alguém que pagasse uma pinga para quem pedisse!

– “Cê pode dá um gole de cachaça pra mim”? – dizia Jó se aproximando do balcão de madeira da vendinha do Vilino.

Assim Jó e as Bastianas viveram no – quase – paraíso chamado bairro dos Coutinhos. Até que tempo e natureza cobraram seu preço pela vida singela e quase primitiva que levavam. O primeiro a desfalcar a família foi o Dito, o mais soturno e calado. Não muito tempo depois Bastiana velha sumiu da porta da choça, da beira do fogãozinho a lenha…

Alguns anos depois foi a vez da Bastiana nova se despedir. Morreu vítima da mesma enfermidade do filho Dito: pneumonia. Trazido para o velório na casa do padrinho, sem saber que era o da própria mãe, quando parou na beira do caixão no centro da sala, Jó tirou o boné da cabeça como era costume entre os cristãos, contemplou o rosto sereno, inerte… e limpo! da mãe, e se limitou a dizer, sem alterar a voz lenta e rasgada:

– Tá boniiiiita!

Da sala se dirigiu para a cozinha, sentou-se num banquinho na taipa do fogão como se fosse sua casa e falou:

– Tem café?

Tão solitário quanto o tamanho do seu nome, ficou Jó. E foi morar numa casinha construída pelo padrinho na beira da estrada no centro do bairro. A casinha de um cômodo só, media três por quatro metros. A mobília se resumia a uma cama e uma mesinha de madeira rústica. Um bambu sustentado por dois pedaços de arame que desciam do teto servia de guarda-roupa. Havia também, dentro da casinha, um pequeno fogão à lenha, pois Jó, como todo homem da roça, cultivava o hábito de esquentar os pés enquanto fumava seu cachimbo antes de dormir. A historia não acaba aqui.

Jó… seus últimos dias no asilo…

Jó nada produziu! Não plantou arvores; não teve filhos; não escreveu livros; mas ainda vive … na memória de alguns. O ‘bugre’ Jó é uma destas pessoas que deixaram rastros, muitos rastros, na minha terra!

 

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