Policia prende… e paga pra soltar!

     Os policiais estavam cumprindo a ‘lei do desarmamento’…

Passava pouco de três da tarde quando a viatura dos Homens da Lei embicou na entrada do sítio do Nicolau, ao pé da Grota do Monjolo no município de Toledo. O sargento desceu preguiçosamente do Palio, abriu a porteirinha de quatro tábuas, fechou e andou os poucos metros atrás da viatura até a porta da casinha branca de alpendre azul. Depois de acalmar ‘Gigante’, o cãozinho malhado pouco maior do que um Pinscher, o sargento fez o levantamento visual do entorno da casinha branca: um pomar e uma horta à direita, um capão de capim Napier ao lado do curral à esquerda, um pequeno ribeirão encachoeirado ao fundo, um chiqueiro com meia dúzia de porquinhos grudados na barriga de uma porca carioca e algumas galinhas ciscando aqui e ali no terreiro vigiadas de perto por um galo carijó dourado. Do rancho ao lado do curral, Nicolau, que estava apartando uma vaquinha Jersey do bezerro, se apressou para vir receber os homens da lei. Se aproximou sorridente, limpando as mãos na calça e abrindo o diálogo:

– Boa tarde sargento, boa tarde seu cabo! Que bons ventos os trazem?

– Visita de rotina, sr. Nicolau – respondeu o sargento, querendo esticar o assunto.

– Mas então vamos entrar… Vamos tomar um cafezinho – emendou o sitiante.

Os dois PMs fingiram relutância, mas, no minuto seguinte estavam na pequena, porém arejada cozinha da casa de onde exalava um delicioso cheiro de bolo de fubá. Enquanto conversavam amenidades da roça ouvindo o chilrear dos passarinhos no pomar, o café da dona Guilhermina, feito no fogão à lenha, ficou pronto. O Sargento até então nunca havia estado ali. Conhecia Nicolau apenas de vista, mas sabia da sua hospitalidade, comum a todo homem – raiz – da roça. Aliás, ele e o cabo haviam planejado chegar ao sítio exatamente por volta de três e meia da tarde… para garantir a merenda.

Como diz o velho ditado, “barriga cheia, pé na areia”. Após encher o pandu de bolo e café quente, era hora de entrar no assunto que levara a dupla de policiais ao sítio do Nicolau: ‘denúncia de porte de arma de fogo’!

– O senhor tem arma de fogo em casa? – perguntou o cabo à queima roupa.

– Tenho sim, senhor… Mais quem contou procêis?

– Ah, foram alguns amigos ocultos da lei – respondeu o sargento dando pouca importância ao ‘detalhe’. E emendou:

– O sr. pode nos mostrar a arma?

– Posso sim. Guilhermina, pega a espingardinha lá na parede do quarto… – ordenou ele.

No minuto seguinte a prendada dona de casa – aquela mesma que fizera e servira o bolo de fubá ainda morno com café quente – ‘serviu também’ a espingarda na mesa.

– O senhor tem o registro da arma?

– A espingarda tem registro não, sargento. É uma espingarda veinha, veinha…

– De quem o senhor comprou a espingarda?

– Comprei, não… É lembrança do meu saudoso avô Neco. Faz 20 anos que ele morreu. Ô saudade! Eu era o neto preferido dele, por isso ele me deu a espingardinha para guardar de recordação…

– Sinto muito seu Nicolau, mas vamos ter que levar a espingarda para a delegacia… E o senhor também!

– Mas… com que eu vou afugentar os ladrões de madrugada?…  Com que arma eu vou espantar lobos, onças e cachorros do mato que aparecerem para comer galinhas aqui no sítio!? – argumentou o sitiante.

– Sinto muito seu Nicolau, mas … “Dura lex, sed lex…” – disse o cabo gastando seu latim.

– Ô, diacho, então vamos… fazê o que, né? – concordou resignado o simplório velhinho.

Toledo, cidadezinha de 7 mil habitantes encravada nas escarpas da Serra da Mantiqueira, pertinho das nuvens, como a maioria das cidades desse porte em Minas Gerais, não tem um delegado de polícia para chamar de seu. Casos de flagrante de ‘porte de arma’ como esse são levados para a delegacia da Comarca.

E lá foi nosso “Winchester Jack” e sua espingarda de espantar gavião predador de galinhas para a delegacia de polícia de Extrema. Viagem modorrenta, já perto do crepúsculo, pela estradinha estreita e cheia de curvas. Quando chegaram a Extrema a delegacia já estava fechada. Fecha às dezoito. O jeito então foi levar o perigoso caubói do pé da Grota do Monjolo para Pouso Alegre.

Como a Regional atende 35 cidades, seu Nicolau entrou na fila. Noite já alta, ele sentou-se ao piano do paladino da lei, assinou o 14 da 10.826 e teve sua fiança – como prevê a lei – arbitrada em R$ 700. A esta altura do sacolejar da carruagem os dois policiais já estavam redondamente arrependidos de terem prendido o velhinho. Agora ao menos, era só pagar a fiança e poderiam dar-lhe uma carona de volta para casa.

– O senhor tem dinheiro para pagar a fiança? – indagou o sargento.

– Tenho não sinhor… eu nem sabia que ia ser preso!!

– Tem parente aqui que possa emprestar o dinheiro da fiança?

– Conheço ninguém nesta cidade, não senhor…

– Bom, então o senhor liga para sua casa e pede para fazer um deposito…

– Tem telefone em casa, não sinhor…

– … Tem filhos nalgum lugar que possam pagar a fiança…?

– Tenho três filhos. Todos moram na roça, tem telefone, não sinhor…

Com uma tonelada de peso na consciência por terem tirado o velhinho do conforto do seu habitat, os dois PMs se transportaram pra lá. Viram a casinha na sombra das mangueiras e abacateiros; viram as galinhas chitas, os frangos das canelas amarelas e o garboso galo carijó dourado ciscando no terreiro; viram o ribeirão cantando dolente por entre as pedras na grotinha; sentiram o cheiro do bolo de fubá da Guilhermina… Foram além! Viram o bezerro gabiru berrando de fome no cercadinho na manhã seguinte, a vaquinha malhada mugindo no pasto com a úbere cheia… Quem iria ordenhá-la? Tudo por causa de uma espingarda velha!… Tudo por causa da famigerada “lei do desarmamento”!

Andaram para lá, andaram para cá no corredor da delegacia, coçaram a cabeça, e concluíram: “Dura lex, sed lex”. Mas eles não podiam ser tão duros. Eles não podiam deixar o velhinho atrás das grades a cento e cinquenta quilômetros de casa, entregue à própria sorte. Tinham que levar Nicolau de volta para casa.

– Nos dê quinze minutos. Espere aqui que nós vamos buscar o dinheiro da fiança – disseram ao delegado e ao sitiante.

Foram a um caixa eletrônico, sacaram trezentos e cinquenta reais das suas próprias contas, pagaram a fiança do velhinho e o levaram de volta para a casinha branca na beira do ribeirão ao pé da Grota do Monjolo…

Quase tudo voltou ao normal no sítio do Nicolau. Só uma coisa mudou. Agora, se alguma raposa sorrateira abeirar o galinheiro das galinhas chitas, sem a velha espingarda de estimação para afugentá-la, só penas…

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *