O rancho, a chuva… e Deus!

Dormi com o canto alegre e desencontrado das aves…

E acordei com a mais bela sinfonia da natureza: a chuva no telhado!

Viver na roça…

Dormir logo após o primeiro canto do Curiango…

Levantar com o cantar do galo…

Tirar o leite da vaca direto na caneca de café e tingir o bigode de espuma quente do café com leite…

Almoçar no meio da manhã sentado no cabo da enxada na sombra do pé de Cedro no milharal…

Ouvir o dia inteiro o cantar do Sabiá na beira do mato… ou o Bem-te-vi na copa do Sucupira…

Enxugar o suor da testa na manga empoeirada da camisa antes de tomar café frio com bolo de fubá no meio da tarde…

Voltar da roça no primeiro cantar do inhambu antes do sol se esconder no espigão…

Apartar os bezerros, tratar dos porcos, das galinhas, consertar a cerca da horta, e só então sentar-se na varanda para pitar um cigarro de palha, ouvindo os acordes das violas de Tonico & Tinoco no radinho à pilha…

 

Essa era a rotina do meu povo até poucas décadas atras.

Mas essa sintonia com a natureza não era suficiente… Meu Coutinho queria mais!

De vez em quando era necessário fazer um… “pouso no mato”!

Dormir no chão, debaixo de uma arvore, contemplando as chamas vermelhas da fogueira, escutando o crepitar da lenha seca se misturando com o cantar dos grilos, ou com o som indecifrável de outros bichos curiosos na mata escura a poucos metros dali…

Dormir… Só quando o assunto acabar! Ou quando a lua cheia começar a descer do outro lado do céu!

Sentir medo… sentir frio… sentir desconforto…

Mas sentir a coragem de desafiar os perigos e adversidades.

Sentir a força de superar!…

E sobretudo…

Sentir liberdade na alma!

Mais que isso…

Sentir a natureza na pele! Nos ouvidos… Ouvir a natureza no seu próprio habitat.

É masoquismo? É sadismo? É loucura? É cultura?…

Ou simples gosto pela aventura? Ou quem sabe… a preservação do instinto natural dos ancestrais?

Cada leitor é livre para abraçar a resposta que quiser…

 

Meu ‘batismo’ de pouso no mato se deu no dia 05 de setembro de 97. Tinha de ser… e foi, inesquecível!

Sete amigos, todos primos e irmãos. Na serra da Grota Funda, um dos pontos mais altos do bairro dos Coutinhos. Cada detalhe daquele primeiro pouso no mato ainda ulula na minha memória.

A chuva fina no meio da tarde… a subida íngreme da serra carregando a tralha… o fogão feito no cupim… o pé d’agua que caiu no início da noite… a lua gigante e pálida surgindo por entre os galhos das arvores… a figura parda do lobo Guará se aproximando pelo cheiro da comida… até ser escorraçado pelo Campeão, nosso jovem cão malhado! E os raios dourados do sol inundando a restinga de mata na manhã seguinte!

Depois do primeiro pouso outros tantos se seguiram… sempre às noites de lua cheia, em época de seca, entre os meses de maio a agosto!

 

Outro dia, não resistindo a saudade dos nossos “Pousos no Mato”, antecipamos nosso calendário… Fomos no dia 06 de janeiro, Dia de Reis! Dia da Gratidão…

Havia previsão de chuva, por isso fomos a um rancho de gado, ao pé da Serra da Gruta Funda.

Éramos cinco. O inseparável Osvaldinho, meu afilhado Ronaldo, o primo Mario e o sempre alegre e risonho Odair do Ieca.

Apesar de não aparecer, a lua cheia brilhava por cima das nuvens… E a noite, embora sem brilho, estava clara quase como um dia!

Para dormir, cada um estendeu seu colchão num canto, ou uma rede pendurada nas linhas do rancho.

Armei minha cama em cima da mesa de um carro de boi. Colchão, travesseiro e uma coberta fina. Mais confortável impossível. Cansados da labuta do dia e de horas de conversa agradável em volta do fogão improvisado no chão ou sentados na cerca do curral, no início da madrugada nos entregamos às caricias de Morfeu.

Pouco tempo depois fomos acordados com os latidos ferozes do fiel Campeão. Parecia que ele estava tentando nos defender do ataque de uma alcateia!

Ao acender a lanterna constatamos que o inimigo não era tão perigoso! Era apenas um gambazinho atraído pelos restos de comida nas panelas. Na tentativa de fugir dos ataques do nosso guardião, o pobre animalzinho faminto se atrapalhou na cerca de tabua e caiu no capim do lado de fora do rancho. Antes que ele se enfurnasse no mato foi alcançado e agarrado pelo Campeão. A luta foi feroz e desigual. O inteligente cão mateiro cravou as mandíbulas no fedorento e impediu sua fuga. Durante mais de um minuto ficaram ali rolando na grama macia do pasto. Campeão sacudia o gambá até ele parar de espernear e o soltava imóvel, fingindo de morto, no chão. Ao menor movimento, tornava a cravar-lhe as mandíbulas e o sacudia novamente. Até que, ao soltar o fedidinho no chão, ele não se mexeu mais. Por alguns minutos o perfume característico do gambazinho ainda circulou pelo rancho até ser levado pelo vento da madrugada. O silencio voltou a reinar ao pé da fresca Grota Funda.

 

Algumas horas mais tarde um novo ruido interrompeu meu sono. Despertei lentamente, como se estivesse sonhando. O ruido era uma mistura de chiado com farfalhar de folhas ou roupas sendo manuseadas… Agucei os ouvidos, abri lentamente os olhos! Tive receio de que fosse uma cascavel quem sabe se aproximando e se preparando para dar o bote! Havia um vulto se movimentando lenta e silenciosamente dentro do rancho… Esperei que meu olhos se acostumassem com a penumbra. Aos poucos fui identificando o vulto misterioso… Era o Mario! Lentamente ele desfez sua cama… dobrou a rede, a cobertinha, vestiu a blusa, calçou as botinas, jogou a tralha nas costas, ajeitou o chapéu de palha na cabeça e sem acender lanterna, sem acordar ninguém e sem se despedir, deixou o rancho e pegou a trilha batida de volta para casa. Quando o vi sumir na curvinha do córrego abaixo, consultei meu relógio… 04:15h da manhã! Ele tinha menos de uma hora para chegar em casa antes de o dia amanhecer, sem ser visto pelos vizinhos… afinal, era terça-feira, dia de um homem sério da roça, trabalhar! Virei para o canto e voltei para os braços de Morfeu.

 

Raspava sete da manhã quando ouvi bulha dos demais companheiros de pouso no rancho. Eles já estavam de pé, amarrando as tralhas. As brasas do fogãozinho improvisado no chão no início da noite anterior haviam morrido. Agora só cinzas! Olhei em volta do rancho… O céu estava bastante carregado. Uma chuva rala, fina e indecisa caia lentamente na Grota Funda. Grama e arbustos em volta já estavam molhados…

– Vai embora ou vai ficar, Chips? – perguntou um deles.

Olhei para mata fechada, acima, a poucos metros do rancho. Olhei para a capoeira rala do lado de baixo. Olhei para a trilha que logo sumia na curva e constatei que a chuva já estava próxima… Olhei para o telhado rústico acima da cabeça já antevendo o barulhinho da chuva e respondi:

– Vou ficar. Vou curtir um pouco da natureza.

Tão logo vi os companheiros de pouso sumirem na curvinha da trilha, puxei a coberta até o pescoço, virei para o canto e me entreguei às caricias de Morfeu! Adormeci ouvindo bem-te-vis, sabiás, tico-ticos, coleirinhas e pintassilgos em volta do rancho…

 

Dormi com o canto alegre e desencontrado das aves…

E acordei com a mais bela sinfonia da natureza: a chuva no telhado!

Parecia um sonho! Parecia que eu estava no meu colchão de palha, no meu catre na antiga casa de pau-a-pique onde nasci, nos anos 60.

A diferença é que os pingos que passavam pelas gretas das disformes telhas de bicas feitas rudimentarmente à mão, deixavam aquele menino de calças curtas, à vezes, apavorado!

Agora, a chuva mansa que batia no telhado a pouco mais de um metro dos meus ouvidos, soava como uma harpa executada por anjos… Era como balsamo… Me levava ao paraíso!

Abri lentamente os olhos não querendo despertar do sonho…

A orla da mata acima, antes escuras e amedrontadoras, estavam ligeiramente brancas pela chuva fina…

O bananal do Messias, na virada do morro do Sapé, levemente sacudido pelo vento, parecia ensaiar um balé nos braços da chuva que ao longe parecia mais densa…

Não. Não era sonho… Era a mais pura expressão da natureza!

Eu estava só, deitado num singelo colchão sobre uma mesa de carro de boi, dentro de um curral de gado, ao pé da serra, distante vários quilômetros da ‘civilização’…  Eu, Deus e a chuva no telhado… era o paraíso… Ou talvez o céu!

Naquele momento senti um único desejo… que a chuva continuasse!

Só existe uma coisa no mundo melhor do que “acordar” com a música da chuva batendo no telhado…

“Dormir” com a música da chuva batendo no telhado!

Aos poucos fui ficando leve, leve, leve … Logo não senti mais meu corpo. Voei… voei na chuva morna e clara, sem me molhar… sem sair dos arredores da Grota Funda.

Tão suavemente quanto adormeci… despertei, uma hora mais tarde!

A chuva havia diminuído. Era como se a natureza fechasse lentamente um chuveiro…

Eu não havia me molhado… mas estava limpo, leve, renovado, de alma lavada.

Levantei do carro de boi… juntei lentamente minha tralha, joguei nas costas, deixei o rancho e desci o pé de serra.

A água do córrego que cruza a trilha estava com o mesmo volume, tão cristalina como na véspera. Toda a água que caíra com a chuva havia penetrado na terra…

O cheiro de plantas e de terra molhada se espalhava por todo o pequeno vale da Grota Funda… e inebriava minha alma.

Era terça-feira, 07 de janeiro de 2003… Dia do Leitor!

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