Neco Paturi, o caloteiro de Monte Sião

Monte Sião

Em minha curta passagem pela capital das malhas – foram apenas três meses antes da ‘primeira’ aposentadoria – colecionei fatos inesquecíveis! Morando de segunda a sexta no alojamento da DP e comendo de restaurante ao lado da igreja comecei ganhar peso e então passei a fazer caminhadas. Ia todos os dias até o bairro dos Francos em Aguas de Lindoia pela estrada vicinal e voltava pela rodovia passando pelo C.T. do Oscar. Como era horário de verão, depois da caminhada pegava a velha Honda ‘Duty’ branca e subia nas montanhas em volta da cidade para curtir o por do sol. O Morro Pelado, com magnifica vista para outras seis cidades ao redor, estava se tornando meu quintal de casa. Em menos de três meses os sete ou oito assaltos a malharias nos fins de semana caíram a zero. Era raro o dia que não mostrava as pulseiras de prata para alguém… Só prisões insignificantes; ladroes pés-de-couve, “dimenor” e devedor de pensão alimentícia.

Mas, como os boatos andam mais do que “égua do chapadão”, logo surgiu a lenda de que havia uma “equipe de fora” trabalhando na cidade em horas mortas, combatendo a criminalidade. Isso assustou os meliantes das cidades vizinhas, especialmente do Estado de São Paulo, que preferiram esperar a poeira baixar! A temível ‘equipe de fora’ era eu e o bate-pau Nilson, funcionário emprestado da Secretaria de Saúde, que conhecia cada ruela da cidade e cada pé de Ipê que margeia as infindáveis e muito bem cascalhadas estradas do município, mas que era incapaz de fechar uma pulseira de prata nos punhos de alguém. Tem até um fato pitoresco que ilustra isso… Semanas antes da minha chegada foram ele e o delegado Watson prender um suspeito. Dito Cabrito resistiu à prisão e entrou em luta corporal com o delegado! Rolaram na poeira e caíram ambos em um barranco na periferia da cidade, mas o delegado mesmo com o pé-quebrado conseguiu segurar Cabrito pelo chifre. Seu filho, com 17 anos na época, fechou as pulseiras de prata nos punhos do prisioneiro. Enquanto tudo isso acontecia, Nilson, o ‘policial ad-hoc’, meu futuro parceiro, permaneceu com o traseiro colado no banco da viatura assistindo passivamente à luta do bandido com o delegado! Watson passou o mês seguinte sem poder prender ninguém… Usando muletas e um grosso gesso no pé…! Às vezes eu levava comigo o professor Clovis, que, a exemplo de Nilson, desviado de função, trabalhava na DP como Vistoriador de Veiculo. Ele também não era muito dado a prisões, mas falava grosso e se impunha! Clovis, culto, bom gosto para musica, respeitado, mostrou-me todos os bons alambiques da redondeza; desde o “Galo Branco” em Socorro, “Engenho do Barreiro” em Lindoia à famosa “Moreninha”, na divisa com Jacutinga! Não que abraçássemos com tanto ardor a sedutora Severina do Popote, mas ‘uma garrafa de boa cachaça abre facilmente qualquer porta em Belo Horizonte’…!

Foi na Capital das Malhas que no final de uma ensolarada manhã eu ouvi uma das frases mais significativas – e mentirosas – da carreira; depois de meia dúzia de prosa com o delegado Watson Vieira Pinho – e ouvir o que não esperava… – o delegado regional que havia me mandado pra lá a toque de caixa sem sequer olhar na minha cara, chamou-me ao gabinete e disse solenemente:

– Vou te levar de volta para Pouso Alegre… “Preciso de você para dar um pouco de dignidade à Policia Civil na cadeia de lá”.

Eu naturalmente agradeci – o falso elogio – e repeti mais ou menos o que dissera em seu gabinete no dia 06 de outubro, após o sepultamento do Inspetor Angelo…

– Sou funcionário do Estado de Minas, chefe… Daqui até Itacarambi está bom p’ra mim! Porém, vou trabalhar mais trinta e cinco dias, sair de férias em janeiro e me aposentar…!

Aposentei, voltei ao trabalho e exato um ano e meio depois, o mesmo delegado regional, depois de me mandar novamente “à toque de caixa” para Santa Rita, teria dito em reunião com a tiragem…,

– Fulano é um safado! Ele estava denegrindo a imagem da policia na cadeia!

Se mereço ou não os epítetos, tanto o elogioso quanto o injurioso, perguntem ao delegado Chefe de Departamento Jose Walter da Mota Matos, responsável pela sindicância! – Que eu fiz questão que fosse instaurada.

Mas essa já é outra historia! O alvo desta breve crônica é o ‘quarteto’ Neco Paturi, inadimplente de pensão alimentícia, seu pai Roberto e o facão Tramontina, o netinho ‘x9’ chorão e meu fiel ajudante Nilson Pé-de-couve…

Ao abrir a porta da delegacia na manha do dia 26 de novembro de 2004, há 35 dias da sonhada aposentadoria, deparei com um rapaz que dizia saber do paradeiro do depositário infiel, com o qual tinha uma pendenga de carro pago com cheque sem fundos. Era preciso levar o depositário às barras da justiça para desembaraçar o imbróglio! Tomamos café e fomos a um sitio no município de Jacutinga. Eu, o interessado na prisão e meu parceiro Nilson “Bate Pau”, policial “ad-hoc” – desculpe o termo cacófono – cagão que só ele! Quando descíamos a MG 459 ele começou choramingar;

– Ô Chips, é melhor a gente pedir apoio ao pessoal de Ouro Fino… O velho é perigoso!

Como seguro morreu de velho, talvez ele tivesse razão! Mas enfrentar toda a burocracia às oito e meia da manhã para mobilizar uma equipe de policiais de outra Comarca para prender um depositário infiel!? Achei meio esdrúxulo. Além do mais, nem tínhamos certeza da precisão da informação. Sem contar que o tempo poderia conspirar contra nós! Quando chegamos ao portão da chácara meu ‘intrépido’ companheiro sugeriu:

– Ele me conhece… Se ele me ver vai querer fugir. É melhor eu ficar aqui na entrada… Se correr para cá ‘eu pego ele’!

Entrei no jardim da bela chácara, ouvi ruídos de esmeril e não demorei avistar meu procurado. Ele estava numa casinha de ferramentas amolando um imenso facão tendo ao seu lado um garotinho de 4 ou 5 anos. Quando levantou os olhos do esmeril, eu e o credor estávamos há dois metros dele. Sabendo do que se tratava, Roberto continuou prolixamente amolando o facão ao som estridente do esmeril que soltava faíscas para todo lado. Quando se deu por satisfeito, desligou o motorzinho e saiu lentamente da casinha com o facão ainda quente em minha direção, testando o corte da lamina…! – Sutil ameaça! – Levantei levemente a barra da calça deixando ver o cabo do trezoitão e falei;

– Facão Tramontina pega fio fácil, né? –

Sem ouvir qualquer resposta ou pergunta, acrescentei:

– Sr. Roberto, estou precisando do senhor lá na delegacia de Monte Sião… – E pedi a ele que colocasse o facão – agora com o corte azulado – sobre uma bancada de madeira, ao mesmo tempo em que estendia-lhe o par de pulseiras de prata. Por uma razão que só vim compreender depois, ele não questionou. Parecia ter pressa de ser preso! Quando eu coloquei-lhe as algemas o garotinho que estava a seu lado desandou a chorar e perguntou;

– Você vai prender meu pai também…?

O “pai” a quem o garotinho se referia, deduzi de imediato, devia ser Neco Paturi, muito mais urgente prender do que o avô Roberto! Neco Paturi era um tremendo caloteiro de Pensão Alimentícia. Se pensão fosse luz! ele dormia no escuro há mais de ano! O jovem de 26 anos vivia fugindo da PM como o vampiro foge da réstia de alho! Para escapar das pulseiras de prata e continuar sem prover a prole, ele não respeitava fronteiras!  Certa vez pulou do terceiro andar do apartamento da mãe atrás do cemitério, numa laje, dali saltou para um quintal e conseguiu dobrar a serra do cajuru – contavam os boateiros de plantão!

Em nenhum momento estivéramos pensando na possibilidade de encontrar por lá o ‘caloteiro de pensão’. No entanto, ao ouvir a pergunta do menino; “prender meu pai também”, a ficha imediatamente caiu. Deixei o velhote de uns sessenta anos, já peado, aos cuidados do credor e pedi ao garotinho que me levasse para a cozinha da casa a pretexto de beber um copo d’água. Ele me acompanhou relutante. Um tanto por sair de perto do avô, outro tanto arrependido da pergunta que fizera! Apesar da tenra idade, já era ‘cobrinha criada’ e percebeu que cometera um vacilo! Apelei para a psicologia…

– Em qual quarto seu pai está…? – Perguntei com fingido desinteresse.

Aos quatro anos, filho de peixe, peixinho é… O garotinho já estava escolado. Continuou rezingando e não disse nem uma palavra que me levasse a seu pai. Mas a pergunta que escapou lá fora na porta da oficina fora suficiente. Vasculhei quase todos os cômodos da casa… Sem sucesso! Quando chequei no ultimo quarto que ficava à oeste, portanto ainda com as sombras da manhã, percebi que debaixo da cama estava mais escuro do que o normal. Mas não identifiquei o fujão. Para evitar sustos e incidentes, afinal Neco Paturi, embora não fosse criminoso, era procurado pela justiça! Ele poderia tentar levantar voo! Ou pior… Poderia usar algum instrumento – talvez um revolver enferrujado calibre 32! – contra mim para evitar a prisão… Cerquei-me de cautela! Durante todo esse tempo meu ‘eficiente’ parceiro continuava na estrada, protegido atrás de uma moita de cipreste! Ele não se dignara a descer à chácara nem para saber se eu ainda estava vivo! Telefonei pra ele! Quando ele chegou, determinei que se posicionasse do lado de fora da janela e acrescentei em tom alto e claro;

– Quando eu levantar o colchão da cama, atire no primeiro ‘objeto’ que se mover!

Eu estava preparado para ver a cara do sujeito surgir debaixo da cama. Mesmo assim o suspense me traiu… Quase disparei o trabuco de susto quando vi aquele baita homem magrelo estirado de costas no canto do quarto! Matamos dois coelhos com uma só cajadada naquela manhã. Prendemos pai e filho. De quebra levamos junto o neto pirralho chorão delator. Tentei pagar pra ele um sorvete em agradecimento por ter entregado de bandeja a cabeça do pai… Mas ele, desde que percebera o vacilo, ficou emburrado e não abriu mais a boca… Exceto para choramingar!

O liso Neco Paturi, que até então eu não conhecia, passou mais de uma semana no X-1, esperando seu advogado selar um acordo com a ex para quitar os débitos alimentícios. Ele era comerciante informal de carros e motos… Precisou desfazer de alguns para pagar a pensão devida há mais de ano!

A bela Monte Sião, cujos ciprestes do jardim central, carinhosamente bem podados e cuidados, imitam capivaras, elefantes, ursos, ‘paturis’  e outros bichos, marcou época…!

 

 

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