Fefê… O aventureiro da potrinha pampa

A imagem mais antiga que trago do pequeno Fefê, na memória, é dele insistindo muito, quase puxando –me pela camiseta, para andar a cavalo. Na verdade era uma potrinha pampa que eu trouxera de Silvianópolis tão logo desmamara. A potrinha miúda, que se tornaria uma bela égua passeira, tinha menos de um ano e pouco mais de um metro de altura. O garoto Marquinhos do Tião, dois anos mais velho que o Fefê, era bem menor do que ele, mas estava acostumado a andar a cavalo tanto em pêlo quanto arreado. Ao ver Marquinhos, ‘cavaleiro velho’, repassar a potrinha pampa em pelo, Fefê quis fazer o mesmo. Depois de recalcitrante insistência, coloquei Fefê no lombo da eguinha. Tão logo soltaram sua crina, ela saiu em disparada. No terceiro ou quarto galope que ela deu o espigado Fefê de 10 anos espatifou-se na grama macia do campinho de futebol e levantou gritando:

– Não valeu, não valeu… Quero ir de novo, quero ir de novo!

Para o garoto criado na cidade, esta foi uma brincadeira insensata, da qual ele felizmente saiu ileso. Seu espírito inquieto e aventureiro o levaria muito cedo para campos mais perigosos.

Aos catorze anos, com expressão alegre no rosto corado, parecendo estar sempre sorrindo, o pequeno Fefê – pequeno na idade, pois já tinha minha altura começou dar rumo – torto – à sua vida… foi apresentado à erva marvada. Não deram muita importância. Coisa de criança…! Um puxão de orelha aqui, outro ali, uns dias sem sair na rua e logo o escorregão “eram águas passadas”… É. Mas sempre depois de um período de estiagem, vem novas chuvas, novas águas e enxurradas arrastando tudo que encontra solto pelo caminho, jogando nas bocas de lobo, no esgoto…

Com Fefê foi mais ou menos assim. Ele ouvia passivamente os sermões, os puxões de orelha… As vezes cabisbaixo, as vezes com os olhos mansos e brilhantes. Se fosse possível ler seus olhos durante estes sermões, acho que eles diriam:

– Tudo bem… Eu não sei por que uso droga. Nem gosto dela… Acho que estou procurando alguma coisa. Não sei o que é… Me ajuda encontrar…? Me ajuda?

Ah! Mas nos dias de hoje, com tantas atribulações, com tanta coisa para fazer, com tantas competições os pais mal tem tempo para si. Além de dar casa, comida e roupa lavada – e sermões – quem vai se preocupar com filhos fortes e saudáveis de 15 anos?

Assim, forte, saudável, grandão, bonito, educado, prestativo, atencioso e aventureiro Fefê entrou e varou a adolescência. Um baseadinho aqui, outro ali. As vezes chegava em casa trazendo algum objeto que não lhe pertencia e respondia:

– Achei na rua… Fulano me deu…

O velho ditado já dizia: “Achado não é roubado”. Então está tudo bem. Mas era. Era roubado, sim. Não tardou Fefê ganhou uma pagina no álbum da policia. Foi um estardalhaço em casa. O pai, sujeito honesto, envergonhado perdeu as estribeiras: queria expulsar Fefê de casa. A mãe também honesta e trabalhadeira ficou vexada, mas mãe é mãe… Choro, vela, fita amarela, mais uns dias sem sair na rua e a paz retorna ao lar sempre tranqüilo de Fefê.

Certa noite de 2004 eu estava de plantão na DP quando a barca da PM encostou rangendo na porta. Alguns colegas de farda fizeram questão de mostrar-me um dos conduzidos antes mesmo dele saltar do forninho, através da grade do porta-presos. Espremidos entre outros quatro estava o espigado e magricela Fefê. Fora pego juntos com outros tantos delinqüentes juvenis como ele, furtando uma residência no Cidade jardim. Estava sujo, maltrapilho, como se tivesse saído do lixão. Tive pena. Tive raiva. Tive impaciência. Tive vontade de chutar o balde…Eu que já havia gastado tanta saliva!! Mas me limitei a mais um sermão. Sentado no duro banco de madeira, Fefê ouvia calado o solene discurso. Só respondia, com humildade e respeito, as perguntas de respostas obvias. Ficou claro, claríssimo para Fefê, naquela noite, que ele seria interrogado e liberado… porque tinha ainda 17 anos. Porém,  dali a um ano, se fosse preso novamente iria mudar-se por vários anos para o velho Hotel da Silvestre Ferraz e ingressar de vez no mundo dos meliantes.

Como sempre, ele concordou com tudo e prometeu mudar de vida.

Mudou mesmo. Ficou um longo período fora de cena do mundo do crime. Até então ele não era dependente químico de drogas. Conseguia ficar muito tempo sem usá-las. Como todo jovem adolescente, Fefê era dependente de carinho, de afeto, de atenção, de aventuras. Arrumou uma namorada e parecia ter assimilado tudo que ouvira nos sermões. Parecia…

Numa noite fria de 2005, andava pela rua do Jardim Noronha, longe de casa, na companhia de um casal e outro nóia, quando resolveram abordar um rapaz para pedir “um reial”. Talvez se o moço tivesse dado o real, tivesse ficado mais barato para todos. Os quatro pularam sobre ele, tomaram-lhe o relógio e a carteira com 38 reais. Foram presos uma hora mais tarde ‘estalando’ a grana numa ‘marika’ …  Fefê havia completado dezoito anos há duas semanas. Sentou ao piano, assinou o 157 e a profecia se cumpriu…

O quarteto de noias que assaltou o servente no Noronha para comprar drogas pegou quase trinta anos de cana. Fefê era o caçula e era primário, recebeu a reprimenda mais leve: 5 anos e 6 meses.

Além da privação da liberdade, do desconforto das celas, do mau cheiro, do risco de contrair doenças, do risco iminente de perder a vida nas rebeliões e motins, os presos que não tem vocação para meliante sofrem também discriminação, São chamados no jargão dos presos, de ‘pes-de-couve’. A eles são atribuídas as tarefas de lavar o boi, fazer a faxina, lavar roupa, dormir na praia e quando necessário são usados como ‘boi de piranha’.  Se for parente de policial, é rejeitado no convívio e tem que ir para o ‘seguro’ ou viver em transito, de uma cadeia para outra. Fefê passou por tudo isso. Mas, se aos olhos dos companheiros de caminhada era um pé-de-couve, aos olhos da justiça era um preso de bom comportamento, recuperável. Por isso mesmo ele teve varias oportunidades de se emendar. E jogou todas no lixo…

Em 2007 deixou o xadrez e passou a dormir no Albergue… Depois de algumas semanas perdeu o sono. Ficou em casa mesmo… Novamente preso, voltou para o velho hotel da Silvestre Ferraz . Lá queriam seu escalpo. Para preservá-lo, foi transferido para o Hotel Recanto das Margaridas em Santa Rita do Sapucaí. Cara de menino alegre, forte, corado, ‘saiu de albergue’ para trabalhar na fabrica de blocos da Prefeitura. Trabalhava durante o dia e voltava para dormir à noite, de segunda a sexta. Sábado e domingo descansava atrás das grades. Regime semi-aberto é assim em todo Brasil. Não demorou ganhou mais um ‘privilegio’… Saia da fabrica de blocos na sexta à tarde e ia direto para casa em Pouso Alegre. Só voltava segunda feira. O carcereiro nem ‘notava’ sua ausência. Bastava dar-lhe um “agrado” – carcereiros que gostavam de agrado no Recanto das Margaridas não faltaram… Depois de um tempo, sábado e domingo era ‘mamão’… precisava também do ‘açúcar’. Esticou a mamata. Saia da cadeia na sexta de manha para trabalhar e retornava somente na terça seguinte para dormir!!! –Arrumei mais inimigos dentro da policia do que fora, tentando combater este tipo de ‘desvio de conduta’.

Num destes fins de semana prolongado a administração do Hotel Recanto das Margaridas mudou e o novo ‘gerente’ foi conhecer seus hospedes, na segunda… faltava Fefê. Apareceu na quarta e perdeu o emprego na fabrica de blocos. Semanas depois voltou para o Velho Hotel da Silvestre Ferraz.

Em 2009 ganhou nova chance. Foi transferido para a APAC, para trabalhar na sua construção. Trabalhou algumas semanas, mas o trabalho era pesado e sem graça. Não tinha gosto de aventura. Pulou o muro e foi para casa. Chegou dias depois. Novo drama. O pai queria expulsá-lo ou entregá-lo para a policia. A mãe queria levá-lo pessoalmente de volta à Apac, pedir mais uma chance… Aconselhei que o levasse ao Fórum. Poderia sensibilizar o homem da Capa peta e ganhar nova chance … Quando ela avisou que ia apresentá-lo ao juiz ele saiu e foi dar uma volta na pracinha do Chapadão. Foi preso em meia hora!

A ultima vez que vi Fefê foi ao final de 2010. Ele estava saindo da delegacia ao lado do pai, com uns papeis na mão. Tinha acabado de deixar o hotel do Juquinha e conseguira um emprego muito bom na Usiminas. O garoto estava cheio de promessas. O pai todo orgulhoso e confiante. Boa sorte.

Os pais, os irmãos, a namorada sempre sofreram com os deslizes de Fefê. Sempre o censuraram e nunca deixaram de acolhê-lo nos momentos difíceis. O que falta, então?

Fefê ficou longe das drogas mais de um ano. Estava trabalhando feliz contente. Tinha o corpo cansado e a mente ocupada. O pouco tempo que tinha para descansar nos fins de semana, passava em companhia da namorada.

Tudo ia bem… mas vieram as férias. Um mês em casa, sem fazer nada, sem um livro que não aprendeu gostar, sem aventuras… Bateu o marasmo, o tédio!!! Foi dar uma volta na praça. Encontrou velhos amigos que nunca se afastaram da droga. Experimentou…Despertou o gigante adormecido da droga. Desandou na pedra. Perdeu o ótimo emprego, de mais de um ano. Saiu de casa. Perdeu a dignidade, a auto-estima, o rumo…

Semanas depois bateu na porta da casa dos pais. Queria dinheiro e cigarro. A mãe calejada e com saudade respondeu que não daria nem um nem outro. Mas ofereceu cama, comida e roupa lavada, desde que ele aceitasse se tratar. Ele não quis nem entrar. Mal aceitou um lanche, preferiu a rua. Voltou algumas vezes à casa dos pais, mas entrou pela janela… apos arrombá-la em busca de objetos que pudessem ser trocados pela pedra bege fedorenta.

Fefê, o aventureiro da potrinha pampa, tem sido visto dormindo debaixo da ponte do Mandu, no velho Aterrado. Foi lá que o procurei duas vezes, na semana passada. Encontrei vários molambentos maltrapilhos, magricelas, nóias, mal-assombrados – Não encontrei o menino que vi crescer – Alguns ainda tem noção do mundo que os cerca. Sabem que pegaram o caminho errado, embora não tenham forças para voltar. Outros já nem vislumbram mais uma vida diferente.

Seja para fugir de uma emoção ruim, seja para encontrar uma emoção nova, todos experimentaram droga um dia…

0 thoughts on “Fefê… O aventureiro da potrinha pampa

  1. Hoje este jovem, vaga pelas ruas do bairro bairro em busca de droga e pao, literalmente um zumbi que perdeu sua vida nos descaminhos do Crack. Que sirva de exemplo para outras pessoas; pais,amigos, irmãos, voce jovem ! Nao use drogras. Este é um caminho se volta!
    Este país onde as leis são descartáveis, onde sepultou seu idioma português e aprendeu a falar porno e inglês. Onde há milhoes de analfabetos e outros milhoes passando fome pelas ruas.
    Somos todos carentes de açoes publicas efetivamente de combate ao narcotrafico e de recuperaçao de usuarios.
    Pode ser o país do carnaval e do futebol, mas não é o meu país.
    Os problemas sociais deste estado federal estão explicitos em todas as esferas bem como a corupção. Este é o país que queremos para nós para nossos filhos?
    Temos nosso papel fundamental em denunciar os traficantes para que mais jovens nao siga este caminho.
    Sirvao-se!! Este país e seu estimado leitor. Não meu.

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