O louco e a cascavel

– Ele saiu de novo pra rua com aquela lança… Por favor me ajude! Ele vai se matar ou machucar alguém…! – dizia a voz de mulher desesperada.

Eu havia pego o telefone sobre o balcão na recepção da velha delegacia por acaso ao passar por ali chegando da rua às onze horas daquela ensolarada e quente manhã. Pedi calma à interlocutora para processar a informação…

– Ele teve outro surto…! Pegou a lança que ele fez esta semana e saiu que nem doido pra rua… Foi na direção da fazenda do Roberto Rios… Meu Deus, ele pode matar varias pessoas! – continuava a voz chorosa.

Cascavel II

De repente uma centelha de luz! Lembrei  do garoto de olhar parado sentado no banco de madeira no saguão da delegacia há duas semanas. Vestia uma calça jeans escura e tinha por cinto uma cordinha trançada no pssador da calça. Da cintura para cima estava denudo mostrando o peito magro cheio de tatuagens negras com figuras sinistras. Os cabelos lisos e soltos vinham até o meio das costas. Manchas de barba rala por fazer conferiam uma fisionomia desleixada e senil. As duas mãos estavam atadas por algemas às costas. Entre as costas e os braços presos havia um grosso cacetete de madeira garantindo que ele não usaria as mãos de jeito nenhum. Os pés estavam juntos um ao outro, unidos por uma grossa corda! Ele fora retirado da traseira da ‘Arca de Noé’ por dois policiais ali na porta da DP e carregado até o banco de madeira – Já vi porcos ariscos serem colocados e transportados assim em bagageiras, de um sitio a outro na roça! – As pessoas que comumente utilizavam o serviço de Registro de Veículos e aguardavam no mesmo banco de madeira liso ali no saguão ou encostavam na janelinha de vidro, ficavam sem saber se entravam ou não na delegacia. Preferiam ficar de longe, como outras curiosas olhando a cena, ou melhor a figura taciturna no banco. Mergulhado num silencio tétrico o jovem de 21 anos, magro, mediano, de traços finos e bonito, parecia um louco varrido. Se por acaso aquilo fosse uma pegadinha e de repente ele soltasse mãos e pés e fizesse um movimento brusco em direção à pesada lança de madeira de mais de dois metros com uma ponta afiada de doze ou quinze centímetros, que estava em pé, deixada propositalmente pelos PMs encostada no balcão enquanto redigiam o BO, seria um ‘deus-nos-acuda’! Não ficaria ninguém ali… O que corresse menos só pararia para olhar para trás lá perto da praça Senador Jose Bento!

As pessoas cochichavam entre si;

– Como os policiais conseguiram se aproximar e tomar a lança dele? – perguntava um.

– Acho que deram tiros de borracha – respondia outro.

– Sonífero! Deram um tiro de ‘sossega leão’ nele e quando ele caiu, pegaram o doido e amarrarm – dizia um mais ‘sabido’!

Chegando casualmente da rua e deparando com a cena, me aproximei dos PMs e quis saber…

– Como vocês o dominaram? – Perguntei ao sargento Pereira.

– Ah, Chips, você sabe que “conosco não tem enrosco” – garganteou o sargento sem responder a pergunta.

Além da lança afiadíssima, o jovem levava consigo também um largo cinturão de couro, um punhal e uma imensa adaga. Daquelas usadas em rituais satânicos! Só em pensar naquela figura semi-nua, com o rosto escondido nos cabelos e na barbicha por fazer, na penumbra de um beco deserto brandindo a lança ou a adaga acima da cabeça, já sentia arrepios! Se o coração fosse fraco, o sujeito morreria só com a visão, sem ser tocado por qualquer das armas brancas…

Enquanto a mãe com as marcas de choro no rosto, passava informações ao soldado Almeida para confecção do BO, um tio do rapaz, funcionário da prefeitura e amigo de alguns policiais respondia as perguntas de um despachante conhecido seu…

– De uns tempos pra cá ele ficou assim… Passa o tempo todo no porão afiando essas ferramentas. Minha irmã já internou ele varias vezes numa clinica em Itapira. Ele volta bom. Depois de um tempo fica esquisito de novo… Parece que está vendo coisas, bichos…! Mas hoje foi a primeira vez que ele saiu pra rua com esta lança… Quando a mãe tentou segurá-lo ele lhe deu um empurrão e apontou a lança pra ela! – Dizia em tom desacorçoado, o tio.

Agora estava em crise novamente. Estava vendo monstros da idade media prontos para esquarteja-lo… Por isso precisava atacá-los primeiro com sua lança de dois metros e arrancar seu coração com sua adaga! Certamente deixara de usar seu medicamento novamente. Se ele lutasse apenas com os inimigos reais não haveria nenhum prejuízo. O problema é que os monstros que povoavam sua mente poderia ser eu, você, a mãe dele, o vizinho, a criança na volta da escola, o velhinho voltando da padaria… E nenhum de nós tinha uma lança de dois metros para se defender dele! Urgia detê-lo e desarmá-lo… Como fizera o sargento Pereira e seus intrépidos policiais na semana passada! Mas por alguma razão que desconhecemos, a PM não estava disponível naquele momento! O telefone que tocara era o nosso. O dever nos chamava.

Na verdade não me lembro de terem nos ensinado na Acadepol que prender loucos varridos fosse nossa função! Mas com certeza a sociedade aprendeu de alguma maneira, que tudo que foge ao seu controle é ‘assunto de policia’…!

Por uma feliz ou infeliz coincidência, por ter feito a gentileza de atender o telefone para o colega que seu ausentara do seu posto ali na portaria, o assunto agora era meu! Eu tinha que tomar alguma providencia…

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