O detetive forasteiro e a medica voluntaria

No final de março de 2006  a Delegacia de Policia da rua Quintino Bocaiúva recebeu um novo policial. O moço, novo na cidade, porem velho de carreira, chegou taciturno, mão no bolso, pouca prosa. Estivera um ano aposentado e fora chamado de volta na pior época do ano… no final de dezembro. Apesar disso, retomara o ritmo e empolgaçao com a função policial. Mas isso fora em Pouso Alegre, cidade que o viu crescer! Agora estava, numa cidade estranha, à qual não nutria nenhuma simpatia, podendo aposentar a qualquer momento. Seria difícil descruzar os braços e voltar a trabalhar…

A criminalidade em Santa Rita do Sapucaí naquele ano, como em muitos outros, estava em alta. Trafico de drogas, pequenos furtos, roubos a estabelecimentos comerciais engrossavam diariamente a estatística criminal do município. Homicídios já haviam ocorridos três e outros sete aconteceriam até o fim do ano. Era impossível ao experiente, comedido e altruísta policial assistir passivamente a tudo isso, recebendo um salário, ainda que modesto, sem nada fazer. Aos poucos foi descruzando os braços, arregaçando as mangas…

Certa manha ao sair rápido com os colegas para um operação de rotina, quase esbarrou numa bela e esbelta jovem com seu inseparável salto alto, no balcão do serviço de transito. Nem a notou. Não havia motivos. Ela também, não, mas como conhecia todos por ali, mais tarde perguntou ao delegado, seu amigo, quem era o ‘forasteiro’ que parecia arrastar os companheiros para o trabalho.

– … Veio de Pouso Alegre. Fim de carreira. Não é flor que se cheire! – Respondeu sem esticar conversa, o veterano delegado. E ficariam nisso se a aposentadoria tivesse saído nos próximos meses.

Ao voltar de férias regulamentares, em agosto, o novo delegado da Comarca nomeou o ‘detetive fim de carreira’, seu Inspetor, principalmente com atribuições de administrar o Hotel Recanto das Margaridas, onde os pouco mais de 50 presos brincavam de cumprir pena. Na ocasião, cumprir pena na cadeia de Santa Rita era uma gostosa diversão. O preso podia entrar e sair do “presídio modelo do sul de minas” a hora que quisesse. Bastava fazer um tatu na parede da cela, galgar o muro externo e ir embora. Alguns saiam pela porta da frente, iam dormir em casa, às vezes fazer um assaltozinho básico e de manhazinha voltavam para a cela. Fabio Junior, o Pinta, costumava fugir e ficar dois ou tres dias mocosado nos muquifos do bairro Recanto das Margaridas. Quando a saudade dos amigos do cárcere batia, ele voltava, subia no muro e passava horas sentado lá em cima, conversando com os colegas. Era preciso acabar com esta farra! Era preciso, como já dissera no dia 26 de novembro de 2004, um certo delegado regional, “dar um pouco de dignidade à policia civil” naquela cadeia.

Se faltava dignidade à policia, administradora do presídio, se faltava pulso, seriedade e até honestidade, faltava também tratamento digno aos presos. Tais como atendimento medico, dentário, alimentação decente por sinal muito bem paga pelo Estado. Em poucos meses a rotina da cadeia mudou, a criminalidade na cidade baixou, dos outros sete homicídios ocorridos no município, seis foram completamente elucidados. O reflexo veio no ano seguinte… A criminalidade caiu em quase 80%.

Entre as medidas adotadas no Hotel Recanto das Margaridas, duas foram fundamentais: firmesa no relacionamento com os presos e atendimento básico de saude. A primeira não era problema, bastava querer. A segunda era mais difícil. Ninguém quer trabalhar num presídio, ninguém quer ter contato com presos. Inicialmente a secretaria municipal de saúde disponibilizou uma equipe medica para atender uma vez por mês no presídio modelo do sul de minas. Era pouco e no terceiro mês o medico desistiu. Restava tentar um medico com perfil de “saúde publica” que se dispusesse a fazer um trabalho voluntario.

Foi aí que o detetive forasteiro entrou na vida da bela e esbelta jovem e seu inseparável salto alto… Ela era medica. A jovem atendeu o pedido como se tivesse tendo o privilegio de fazer um trabalho voluntario. Com seu largo e cativante sorriso, a jovem medica recém formada, passou a atender vez por semana na cadeia. Toda quarta feira de manhã, enquanto descansava do plantão no Pronto Atendimento Municipal, ‘carregava pedra’… Subia para o Hotel Recanto das Margaridas, onde além do trabalho medico, fazia também importante trabalho social e  psicologico.

O relacionamento do detetive forasteiro com a medica, durante vários meses, era meramente profissional. Se restringia a escolta e segurança durante o atendimento no presídio. Ao voltar das férias em fevereiro,  ela não estava mais lá. Havia se mudado para Varginha e, pior, ela é que precisava de tratamento medico. Estava internada com uma seria crise de Lúpus. A amizade do detetive forasteiro com a medica do salto alto começou estreitar aí, com a preocupação dele de que ela ficasse bem e pudesse voltar a atender no presídio. Alguns meses depois ela voltou à rotina.

Apesar da aproximação causada pela doença e pelo objetivo comum, que era melhorar a qualidade de vida dos hospedes do hotel Recanto das Margaridas, o relacionamento continuou cordial e profissional, embora mais estreito. Além do que, o forasteiro também tinha seus fantasmas… Embora casado há longos anos e os filhos formados, prestes a aposentar, psicologicamente não estava bem. Alguma coisa o frustava e incomodava. Não sabia o quê! A única certeza que tinha é que quando aposentasse, iria mudar radicalmente de vida… de cidade, de estado, talvez até de país!

Sem perceber, o andar da carruagem, o resultado do competente trabalho policial, a amizade com a jovem medica, aos poucos estavam afastando a ansiedade da iminente aposentadoria. A idéia de largar tudo e partir em busca do desconhecido, já não era tão contundente. Já não pensava mais em Mato Grosso, Rondônia, Amapá… Um belo dia, ao terminar o atendimento dos presos na cadeia, um fato inusitado aconteceu … O detetive forasteiro exibiu a canela com um ferimento e pediu medicamento para cicatrizá-lo. Ao examiná-lo a medica, na carceragem, na presença dos demais policiais, deu o diagnostico e o prognostico:

– Isso é coisa atoa, vai cicatrizar naturalmente… Mas se você fosse solteiro, eu cuidaria do seu dodói…!

Susto, surpresa, brincadeira entre amigos, constrangimento, rubor…!  Quando percebeu já havia falado. Gargalhada geral, gerando descontraídas brincadeiras.

Brincadeira involuntária que gerou uma coceirinha no ego, tanto dele quanto dela. A partir daquela manhã, nunca mais seriam os mesmos. Nunca mais se veriam apenas como colegas de trabalho. Agora tinham mais assuntos do que asma, micose, depressão e ziquizira de cadeia para discutir. Sem querer, sem se dar conta, estava nascendo um romance… Antes mesmo de se tocarem, precisavam de definições, tomar decisões…

Foi no mês de julho que decidiram seguir o mesmo caminho. O detetive forasteiro, aquele que “não é flor que se cheire”, já não era mais forasteito. Foi morar na delegacia. No mês seguinte era um novo casal. Alem da grande diferença cronológica de idade e de um casamento também encerrado, tinham algo mais em comum; espírito jovem e muita vontade  de recomeçar, de reconstruir, de ser útil…

Não foi fácil. Ambos tinham gênios muitos forte. Ele muita experiência para oferecer, ela muita impetuosidade para impor. Ele muita saúde, ela pouca… Logo no primeiro mes de relacionamento o convívio foi posto à prova. Vinte e quatro dias num quarto de hospital em Varginha e mais uma semana na UTI em São Paulo. Depois disso mais duas curtas separações.

Em 2009 uma mais longa. Desta vez, dois meses distantes, com muitos diálogos inflamados até que veio o silencio. Não mais se falaram. Precisavam de silencio e solidão para reflexão, para a purificação, para a espiritualização, para talvez… se reencontrarem.

Uma neblinada madrugada de junho – onze da manhã de um gelado domingo de junho, para um solteiro cinqüentão, era madrugada – o telefone tocou;

– Oiiii… Já amanheceu por aí?

Bem, amanheceu meio minuto antes, quando o telefone zuniu debaixo do travesseiro, mas pela extensão do sorriso do outro lado da linha, o ex-detetive forasteiro preferiu sorrir amarelo e dizer que já estava de pé a muito tempo.

– Estamos indo à Pouso Alegre almoçar no “Tomodati”…  Quer comer suchi com a gente?

Depois de empanturrar de churrasco até as quatro da manhã, peixe cru com arroz e ‘caipisaquê’ de kiwi com bastante gelo era uma boa opção – pensou o detetive – Além do que, não se viam há mais de 60 dias! Duas horas depois estavam almoçando no Shoping Minas Sul em Poços de Caldas. A noite já haviam reatado o romance. O casamento formal aconteceu numa segunda feira 13, ás 13 horas, em Santa Rita. Trinta e cinco dias depois voltaram a Poços para a Lua de Mel.

Depois de diplomar-se em “Impactos da violência na Saúde” pela Fiocruz e pos-graduar-se em Saúde da Família, pela UFMG, a ex-medica voluntaria do presídio, que nasceu as 13 horas do dia 13 no quarto 13, atualmente exerce suas funções no PSF de Pouso Alegre e é medica perita da Seplag-MG. Participa também de grupos de trabalhos voluntarios no combate às drogas. Seu Lúpus ainda insiste em alterar seu humor. Nada no entanto, que uma boa dose de amor não possa aliviar.

O ex-detetive forasteiro pendurou suas chuteiras, mas encontrou no jornalismo uma maneira de continuar a combater o crime, mostrando a cara dos meliantes e as conseqüências da caminhada criminosa.

Esta é a nossa historia….

E viverão felizes para sempre…

Quem disse que 13 é numero de azar…???

0 thoughts on “O detetive forasteiro e a medica voluntaria

  1. Olá meu caro, sempre vejo seu blog, hoje estava aqui e comecei a ler esta linda historia, parabéns para vcs, q Deus ilumine cada dia mais a vida de vcs. abçs.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *